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NELSON RODRIGUES E A RELEITURA – ARMANDO AVENA

Redação - 14/06/2024 08:37

Nelson Rodrigues dizia que “a arte da leitura é a da releitura”.  E tenho me dedicado a ela, mas nem sempre acerto. Quando leio os clássicos, Dostoievski, Shakespeare, Flaubert, Tolstói , Machado de Assis e outros, não tem erro, a satisfação é garantida. A releitura dos contemporâneos pode, no entanto, não corresponder. Outro dia, assisti uma entrevista de Umberto Eco na qual ele dizia que seu melhor romance era o Pêndulo de Foucault e, mesmo sem ter boa lembrança da primeira leitura, dispus-me a uma releitura.

E reli, sabendo o peso que é para um autor ter de escrever um novo livro após o sucesso estrondoso do anterior, mas a empreitada não valeu. É que, diferente de “O Nome da Rosa”, um romance bem elaborado no qual a erudição está à serviço da história, em o Pêndulo de Foucault a história ficou à serviço da erudição. E somos jogados num redemoinho cultural que passa por Cagliostro, pelo Conde de St. Germain, Rosa Cruzes, o candomblé da Bahia e muito mais, com direito a um passeio por Salvador e uma conversa superficial com uma iyalorixá.  Já foi dito que o Pêndulo Foucault é um “Código da Vinci” para intelectuais, mas não gosto da comparação, prefiro a afirmação do próprio Umberto Eco de que foi ele que inventou Dan Brown e seu livro, lançado quinze anos depois.

Aliás, quando falo em erudição, lembro da crônica de Nelson Rodrigues sobre o amigo eruditíssimo dele e de Hélio Pellegrino. Nelson não suportava sua “fulminante erudição” a ponto de lhe escrever uma carta anônima, em que dizia o seguinte: “Leia pouco, pelo amor de Deus, leia pouco!”. E aconselhava-o a ler todo tipo de folhetins desde Dumas pai até Eugène Sue. Era puro escárnio e é nesta crônica que Nelson recomenda a arte da releitura: “Há uns poucos livros totais, uns três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos”.

E nessa toada, o dramaturgo conta que, quando questionado por um erudito sobre o que lia, ele respondeu: “Dostoievski”. O homem teimou: “Que mais?”. E ele: “Dostoievski”. Persistiu na teimosia: “Só? E Nelson retrucou: “Dostoievski”, para com isso dizer que “pode-se viver para um único livro de Dostoievski, uma única peça de Shakespeare, ou um único poema de não sei de quem”. Pois é, de minha parte leio Shakespeare sempre, como se fosse minha Bíblia, e “Memórias Póstumas de Brás Cuba” é meu catecismo. Aliás, quem foi meu aluno na UFBA, na disciplina Ciência Política, era obrigado a ler Ricardo III de Shakespeare, que Nelson adorava, e não apenas porque a peça coloca as vísceras da ambição pelo poder para fora, mas porque é uma síntese da humanidade em toda sua grandeza e canalhice. Reler é uma experiência única, pois o livro nunca é o mesmo e você, leitor, tampouco o é.

Publicado no jornal A Tarde em 14/06/2024

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