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SAMUELITA SANTANA- O MEDO DE OPINAR

Redação - 25/09/2022 10:07 - Atualizado 26/09/2022

Li um artigo essa semana em que o autor fala do cenário “apocalíptico” que paira no mundo hoje e, da possível caminhada da humanidade rumo à uma zona sombria e de trevas. Até parece contrassenso falar em “era das trevas” num mundo tão tecnológico, cheio de modernidades e acesso global. Mas, fiquei matutando sobre algumas abordagens que o autor faz, como a que releva a infestação de justiceiros sociais cuspindo ódio, narrativas ideológicas, fundamentalistas, teorias conspiratórias e bizarrices nas mídias digitais, além da que destaca o volume infinito de informações disponíveis no ambiente digital, causando ansiedade, frustração, sensação de distopia, de não pertencimento e ainda gerando mais erro que conhecimento confiável. Uma cadeia ininterrupta e interminável de dados e interpretações, confusa e principalmente danosa para as jovens mentes em formação, ávidas por verdades, coerências, abrigos seguros e caminhos que lhes tirem do caos.

Todo cuidado é pouco, porém, quando se trata de classificar cenários e contextos com rótulos estereotipados, reforçando no imaginário coletivo uma configuração distorcida da realidade. Assim como lá na Renascença do século XVIII os intelectuais, conhecidos como iluministas, trataram a Idade Média de forma simplista e preconceituosa, insistindo em classificar o período como a “era das trevas”, hoje também, nesse mundo político de polarização extrema e raivosa, lançar mão do “retorno das trevas” utilizando um pensamento histórico incorreto, é explorar de forma abusiva um conceito que serve apenas de retórica política, alimentando falsas narrativas para esse ou aquele viés ideológico.

A expressão “estamos de volta à Idade Média” se tornou lugar comum, especialmente no eco das chamadas vozes progressistas – tanto na política como na imprensa – numa tentativa de carimbar com o rótulo de medieval o que consideram tradicionalista, conservador ou até religioso. Mais que uma comparação, trata-se de um julgamento preconceituoso baseado em dois erros elementares: o primeiro deles é a visão equivocada sobre a Idade Média, distante da realidade histórica; o segundo se encontra na gênese dos pensadores iluministas que – assim como os progressistas atuais -, se arrogavam donos e herdeiros da ciência, da cultura e da modernidade, despejando na Idade Média tudo o que consideravam fanático, irracional e obscuro.

Ferrenhos opositores da antiga tradição e da dominação política, econômica e cultural da igreja Católica desse período, os intelectuais renascentistas jogavam no colo da Idade Média o tempo da escuridão, das sombras e das trevas. Uma preconcepção negativa que se espalhou com sucesso na Europa do século XVIII e entrou definitivamente na mente popular. Com visão carregada de eurocentrismo, esses pensadores ignoraram por completo o resto do mundo e não enxergaram os avanços que aconteciam por exemplo no Império Islâmico, nas Américas e até na China. Sequer perceberam a difusão do conhecimento com a criação de escolas e universidades, além do desenvolvimento tecnológico na agricultura, no artesanato, na matemática e na astronomia, evoluções que possibilitaram a expansão marítima e a descoberta de ricos legados de sociedades americanas, como os maias, os astecas e os incas.

Foi a partir do século XIX que esse entendimento começou a ganhar novos rumos, através de trabalhos históricos produzidos por estudiosos e também pelo surgimento do Romantismo, movimento artístico que resgatou importantes elementos medievais. Luzes que mostraram, inclusive, que o próprio Renascimento foi uma evolução de tudo o que foi concebido na Idade Média. Restringir, portanto, um período de quase 10 séculos, ou seja, cerca de mil anos, a um tempo de trevas, atraso e retrocesso e ainda associá-lo de forma depreciativa a contextos obsoletos é, no mínimo, cegueira histórica.

Pode-se dizer que o argueiro que impedia os iluministas de enxergarem além dos muros do próprio saber, é bem semelhante a trave que cega os que se dizem hoje “iluminados”. São os extremistas contemporâneos que povoam os ambientes políticos, as redes digitais e os mass media, intimidando, patrulhando, cerceando e ridicularizando posicionamentos diferentes dos seus. Autodenominados guardiões das igualdades sociais e das liberdades democráticas, esses grupos ideológicos usam a defesa da democracia para cometer a mais abusiva, fascista e antidemocrática ação contra o indivíduo: a de atacar o seu legítimo direito de pensamento, escolha e expressão.

Colocando-se sempre num pedestal de intelligentsia e superioridade intelectual, os “iluministas” da atualidade tratam com desprezo e deboche os segmentos tradicionalistas e todos os que defendem a filosofia social do conservadorismo, rotulando-os de reacionários, fascistas, quadrados, retrógrado
maléficos e ditadores. E ao colocá-los com selvageria nesse lugar, insistindo na cultura do cancelamento, da destruição de imagens e de reputações, essa tropa guiada – porque cega – vai tocando o terror no íntimo da sociedade, gerando um sentimento de pavor, inadequação, temor de ser reprovado, não ser aceito e, pior, silenciando com a mordaça do medo posicionamentos e opiniões que poderiam ser de grande relevância no ambiente em que fossem postos.

O medo de ser aniquilado, troçado, devastado por opinar ou se posicionar é o que se pode chamar de a verdadeira treva. Sob esse ponto de vista, estamos, sim, adentrando no manto sombrio da escuridão, criando uma geração inteira de jovens intimidados, confusos, sem compreensão das ferramentas reais que conectam o seu passado e o seu futuro. Jovens que, com raras exceções, abominam o exercício da cidadania política, se afastam cada vez mais dos debates público-sociais e mergulham, em fuga, no mundo fictício das banalidades.

 

Samuelita Santana Santana
Jornalista

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