Vinícius de Moraes dizia que a prosa é uma arte ingrata. Queixava-se não da prosa ficcionista, que cria uma história com seus personagens e a conduz com ou sem um plano definido, mas da prosa cotidiana, da crônica, que exige a feitura diária, semanal ou quinzenal, como a que escrevo agora. É uma prosa diferente, pois concede ao autor extrema liberdade para dar pitacos sobre o que lhe aprouver e nada o limita, a não ser o espaço da página, no meu caso os inescapáveis dois mil e oitocentos caracteres com espaço.
Mas o bardo inglês já havia alertado que “a liberdade indócil é domada pela própria desgraça”, e não há desgraça maior para um cronista do que fazer-se de gato mestre e se pôr a escrever sobre assunto que não domina ou arrogar-se a esgotar um tema ou uma ideia num tipo de gênero literário que é por definição leve e descontraído ou, quando muito, denso mas objetivo. Aliás, não gosto das definições de gêneros literários. Meu último livro, por exemplo, intitulado “Os 7 Vocábulos”, é um “romanconteatro” e adorei quando a edição da Revista Cult de abril o definiu como uma obra “que mistura ficção, prosa poética, poesia e teatro”.
Otto Lara Resende, um grande cronista brasileiro, lembra, na crônica intitulada Vista Cansada, o desígnio do poeta: “se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver”. E conclui: “Um poeta é só isto: um certo modo de ver”. E é possível parafrasear o cronista para dizer que a crônica também é apenas isto: um certo modo de ver. E o modo de ver de Otto era único, a ponto dele escrever uma crônica deliciosa sobre o anunciado soluço da inflação brasileira, situando-a perfeitamente no cotidiano de então: “Eu não sabia que a inflação soluça. Gostei demais dessa novidade. Não é preciso entender do riscado para saber que a inflação, a nossa pelo menos, estava a um passo da morte”. A crônica foi escrita na famigerada era Collor, após a inflação ter sido congelada e fiscalizada e mesmo assim ter saído galopando por aí.
E não pense o leitor que é fácil escrever uma crônica, ainda mais quando não se acha o assunto, tampouco que este cronista seja uma sumidade que cita autores de cabeça à medida que desfia o texto. Nada disso, muito do que está aí vêm do meu antigo dicionário de citações e, é claro, dos maravilhosos livros de cronistas brasileiros. Todos eles já amanheceram sem vontade de escrever, ou sem assunto para tal, sendo obrigados a fazê-lo. Rubem Braga, por exemplo, certo dia jogou os jornais fora porque eles pretendiam dar-lhe notícias de muitos problemas e ele não queria problema algum. E decidiu: “Não quero contar prosa, mas tenho arroz, feijão, carne, alface, laranja, pão, tudo o que um ser humano necessita para viver bem”. Foi então que descobriu que “a felicidade é uma suave falta de assunto”.
Publicado no jornal A Tarde em 27/05/2022