

Então, meu caro leitor, não tenho neste momento nenhuma vontade de escrever. Sinto-me em pleno inverno, embora o sol da primavera esteja brilhando. A desesperança é uma forma de lucidez, diria Cioran, e é assim que me sinto: completamente desesperançado com o ser humano.
Como escrever alguma coisa se há mais de uma centena de cadáveres estendidos na Praça da Penha, no Rio de Janeiro, e um governador que diz que isso é uma vitória? Como escrever alguma coisa se esses que foram mortos mataram e infernizaram a vida de outros tantos? Pois é, a barbárie expulsa a vontade de escrever.
Há algo de podre no reino da Dinamarca, diria Shakespeare, até porque aqueles que um dia frequentaram as escolas e as universidades estão nas redes sociais, cada um com um fuzil de imagens fakes e um revólver de frases feitas, fazendo do Instagram e do TikTok campos de batalha.
É uma pena ver que os brasileiros mais preparados não estão em busca de uma solução para a violência, não estão a exigir uma ação organizada, integrada, baseada na inteligência e no corte radical do fluxo de recursos ao crime. Não, temos, de um lado, uma certa indiferença em relação ao crime, uma naturalização do fato de que todos os dias estão morrendo dezenas de jovens nas cidades brasileiras. E, de outro, os defensores da barbárie, que mal sabem que, parafraseando Gandhi, a política de “olho por olho” deixará o país cego. Se a barbárie for elevada à condição de política, só valerá a pena escrever, como resistência.
E, se escrever for preciso, é preciso perguntar o que desejam os brasileiros. Desejam criar um Nayib Bukele brasileiro que faça detenções em massa, prisões preventivas prolongadas, julgamentos sumários e suspensão de garantias e liberdades fundamentais, para que o Brasil vire um El Salvador gigante e brutal? A maioria da população dirá um sonoro “não!” a este projeto. Mas essa população tampouco se conforma com uma certa indiferença que tomou conta dos governos brasileiros e que se configura na ideia de que é possível conviver com o crime. Não é! O Brasil repudia os Bukeles brasileiros, mas exige uma ação concreta contra a criminalidade.
Houve um tempo em que a inflação estava destruindo o Brasil. Os brasileiros viam seu dinheiro perder valor a cada minuto. Apareceram, naquela época, os Bukeles da economia, propondo medidas radicais, como o confisco da poupança ou o congelamento de preços. A barbárie econômica não funcionou, e a inflação foi vencida com a inteligência e um programa racional que criou uma transição para uma nova moeda, o real.
É assim que precisamos combater o crime no Brasil. Não com a barbárie ou com Bukeles radicais, mas com racionalidade. Uma ação nacional, com a participação de todos os poderes da República, para que, por meio do estrangulamento financeiro e da ação policial forte e coordenada, se possa atacar o coração do crime organizado.
Publicado no jornal A Tarde em 31/10/2025
foto: ilustração de Cau Gomez – A Tarde