Indagado sobre seu documentário, Slava Ukraini, que registrou a injustificável invasão russa a Ucrânia, Bernard-Henri Lévy, um dos intelectuais mais respeitados da França, afirmou: “Na Ucrânia, eu senti pela primeira vez que o mundo que conheci, o mundo no qual eu cresci e quero deixar para meus filhos e netos pode acabar”.
Eu não fui à Ucrânia, mas sinto a mesma coisa e assusta-me a possibilidade de um tirano como Putin ganhar a guerra, fortalecendo-se para novas invasões. E os ditadores sempre avançam nos territórios vizinhos, especialmente quando não são confrontados. Se o mundo tivesse reagido à invasão da Criméia, talvez não houvesse uma guerra na Ucrânia.
Assim como Lévy, não quero deixar para meus filhos um mundo em que a tirania seja a regra, em que as redes sociais, ao invés de serem regulamentadas, sejam apenas suprimidas e a liberdade seja uma dádiva ofertada por um tirano ou por uma camarilha incrustada nos palácios. E, não me venham com postagens ridículas, pois liberdade não é sinônimo de “tudo é permitido”. Liberdade é poder fazer tudo aquilo que a Constituição, a lei maior de uma nação, não proíbe.
Mas um amigo me diz que Bernard-Henri é um ocidentalista, que sua posição reflete o pavor do Ocidente frente à ascensão da Ásia e que representa o medo da derrocada do império americano que será superado economicamente pela China, que passará a ditar as formas de comportamento no mundo.
É uma bobagem. Quem conhece um pouco de história sabe que os impérios não caem apenas porque um país superou o outro economicamente, que os impérios caem por conta de conflitos armados de grandes proporções e que o império ocidental, melhor conceituá-lo assim, reúne a União Europeia e a América que são muito mais poderosos militarmente do que os países asiáticos e são também o maior mercado deles.
Mas o que me causa espécie é meu amigo demonstrar satisfação com o fim da civilização ocidental que, apesar dos pesares, criou o mundo moderno, que não será melhor sob o domínio chinês. O que a China fez foi adotar o pior da civilização ocidental e proibir o melhor do que ela produziu. A China adotou em grau máximo o modelo capitalista e levou ao extremo a exploração e a ganância pelo lucro, sem sequer preocupar-se com as salvaguardas que o Ocidente produziu para proteger os trabalhadores. Ao mesmo tempo, proibiu o melhor da civilização ocidental: a democracia e a liberdade. E lá a camarilha que se perpetua no poder só o faz porque tirou a liberdade do povo e sequer permite internet livre para todos. Aliás, o fato do aplicativo chinês Tik-Tok ser proibido na China é um símbolo do descaso pela liberdade individual. Se isso é o novo, prefiro deixar para meus filhos a velha sociedade ocidental.
Publicado no jornal A Tarde em 04/05/2023