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HILDA E O DESEJO – ARMANDO AVENA

Redação - 05/08/2022 09:10

Um leitor envia-me um e-mail comentando meu artigo sobre o livro de Dino Buzzati, “O Deserto dos Tártaros”,  cujo protagonista, Giovanni Drogo, espera por toda à vida num quartel distante a chegada do  inimigo para assim mostrar seu heroísmo e alcançar  a glória. Mas os tártaros não chegam nunca e quando ele se apercebe disso, já é tarde. O livro é uma alegoria sobre a busca da glória, do reconhecimento, da celebridade ou até de um inimigo real que dê sentido à vida.

Mas o que meu leitor quer dizer é que às vezes os tártaros chegam. Ele tem razão, mas lembrei-me de imediato da famosa frase sempre atribuída a Oscar Wilde, mas cuja autoria é de Bernard Shaw: “Há duas tragédias na vida: uma, de não alcançar o nosso desejo, outra, de alcançá-lo”. O dístico é um aviso àqueles que se jogam de corpo e alma em busca do seu desejo, sem lembrar que todo sonho traz junto um pesadelo. Quem busca a celebridade, deve saber que está negociando sua privacidade; quem anseia pelo conhecimento, pode estar cedendo em troca a ingênua felicidade; quem deseja o dinheiro a qualquer preço pode terminar atolado na corrupção.

A história do Dr. Fausto, o personagem imortalizado por Goethe, é o símbolo da tragédia de que nos fala Shaw. Fausto queria o poder, o conhecimento e a juventude e em uma noite lúgubre viu “um perro transformar-se em escolar viandante” e tornar-se, de repente, Mefistófeles, o demônio cético que, habituado a ambição dos homens, realiza todos os seus desejos à preço módico.

Fausto rende-se à sedução de Mefistófeles e, dando em troca apenas sua alma, que não lhe teria serventia nesse mundo, tem de volta a juventude perdida, o poder, o conhecimento e o amor, mas não tarda a perceber que o demônio lhe havia dado um presente de grego. Mefistófeles tudo podia prometer a Fausto, afinal os demônios são movidos por uma única ética, a ética do desejo, e pouco se lhe dá as consequências que virão – e elas virão. Alguns escritores esperaram os tártaros por toda a vida e eles não chegaram ou só chegaram quando já estavam mortos, outros depararam-se com eles de repente, num golpe de sorte.

Hilda Hist, por exemplo, poeta e uma das maiores escritoras brasileiras, só teve o verdadeiro reconhecimento após sua morte. Linda, livre e transgressora, Hilda, talvez por ser assim, foi desprezada pelas grandes editoras e sua obra não atingiu o grande público. Rebela-se então e em busca do público, ironizando seu gosto literário, embrenha-se pela literatura erótica, mas seu texto era tão maravilhosamente bem escrito que passa ao largo dele. “É muito chato escrever para ninguém”, dizia, mas talvez tenha sido esse o destino que ela escolheu. Ao esconder-se desde os 35 anos na Casa do Sol, que ela construiu no interior de São Paulo, Hilda, talvez inconscientemente, percebeu que seu desejo de ser amada pelo grande público poderia resultar em tragédia.

Publicado no jornal A Tarde em 05/08/2022

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