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SAMUELITA SANTANA – VISUALIDADES: NOVO TEMPO SE INAUGURA

Redação - 06/01/2020 08:28 - Atualizado 06/01/2020

Quando fiz vestibular na UFBa, lá pelos idos de 80, o tema da redação foi pinçado da música Era Nova, de Gilberto Gil, incluída em seu álbum Refavela onde o artista revisita sua ancestralidade africana. O trecho-tema da redação – “Novo tempo sempre se inaugura a cada instante que você viver” – marcou minha entrada na Universidade, os anos estudantis que se seguiram, o início da vida profissional como jornalista, a consolidação da carreira, o meu desistir de tudo para viver uma longa experiência fora do Brasil, o retorno ao meu país trazendo uma filha no colo, a retomada profissional e os vários ciclos que se seguiram até chegar a essa Era de agora onde tudo, absolutamente tudo, é diferente da época em que escrevi o texto falando de mudanças, transformações e tempos que não se repetem e não retornam jamais.

Iniciando essa novo ano que inaugura a década 2020, me reportei à poesia de Gil e à verdade impressa nela em cada um dos meus tempos. Mesmo querendo reeditar em alguns momentos o que se foi, isso não foi possível. Porque o tempo é inexorável e o que passou, como diz Gil, já era. Já era, inclusive, o que fomos. Porque no fluxo das mudanças lá vamos nós nos transformando também e deixando de ser as pessoas que éramos, nos descobrindo outros seres, outras figuras com pensamentos, atitudes, posicionamentos, ações e reações que só percebemos quando determinadas situações nos impõem acioná-las. Elas chegaram de forma, assim, sutil. E nos surpreenderam com a constatação de como o tempo nos moldou, como forjou o que haveríamos de ser para enfrentar o que estaria por vir. E concluímos que as nossas verdades foram as verdades da hora. E que as mudanças no tempo fizeram surgir as nossas verdades de agora. E que, assim, continuamos fiéis ao que somos sem perder a nossa essência, a nossa fé e, naturalmente, sem perder também uma coisa que parece nos acompanhar em cada um dos nossos ciclos e fases: o medo. Que pode nos sabotar. Ou nos levar adiante.

Valendo-me mais uma vez da genial composição de Gilberto Gil, arrisco: olhar o mundo causa medo. E o medo, essa sensação que nos coloca em estado de alerta, produzindo apreensão, pode até desaparecer a depender das circunstâncias. Mas vira e mexe lá estará de volta, espreitando o que consideramos perigo ou movimentos que nos leve ao desconhecido, ao aversivo ou simplesmente ao novo. Mudam-se os tempos, mudamos nós, mas o medo estará sempre ali. A forma como enfrentamos esse sentimento é, na verdade, o que muda em nós. Os tantos tempos inaugurados ao longo das nossas vidas acabam por criar couraças, fortalezas impensáveis e a capacidade de transformar o medo que paralisa, que vira fobia, em reação pró-ativa pela sobrevivência.

Esse tempo de agora que causa tanto medo só de passear o olhar pelo mundo, traz em si, em seu contexto, algo que apavora e oprime. A sensação angustiante de que não alcançaremos nunca o “lá”, aliada ao espectro geopolítico de que algo ruim está por acontecer, parece pairar assustadoramente nas várias idades, segmentos e classes. As cobranças por sucessos meteóricos e performáticos e as inseguranças geradas pelos conturbados cenários políticos ampliam cada vez mais o medo de fracassar, de ficar fora do enredo, de ser atropelado pela conjuntura tecnológica ou engolido por ondas fascistas e antidemocráticas. O medo é real. Recentemente ouvi de uma pessoa bem novinha, saindo da adolescência, que não sabia o que esperar do futuro e que apesar de curtir tudo que a tecnologia lhe oferece, não gosta muito dos tempos de hoje, não acha o mundo um lugar bacana, não confia nos governos e considera as pessoas cada vez mais voláteis. De um fôlego só! Eu, sem fôlego, emudeci refletindo respostas. De um amigo pra lá de balzaquiano, ouvi algo impactante: “Estou com uma dor de medo que não passa! Não sei identificar o que é”. Dor de medo foi forte ouvir!

E chega assim esse novo tempo, esse mesmo, de agora: o tempo que causa medo. Por outro lado, é um novo tempo que se inaugura e viver será sempre a mola que nos impulsionará seguir adiante, com medo ou sem medo, constatando que a verdade sempre está na hora. E que a nossa verdade de agora é a que nos desafia a acreditar, a buscar o que intuímos ser o melhor, é a que nos inspira a ter fé e apostar que podemos. Que podemos realizar, melhorar, influenciar, maturar, tolerar, contribuir, mudar, nos superar e vencer. Vencer inclusive o medo de ir, de tentar, de perder, de fazer, de ser. Então? Então vale recontar a canção de Gilberto Gil, quando diz que “os cabelos da eternidade são maiores que os tempos de agora” e que, portanto, o fato de estarmos vivos “significa que dá pé! ”

Obrigada, Gil.

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