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A MORTE DE MATUSALÉM – ARMANDO AVENA

Redação - 24/12/2023 09:12 - Atualizado 24/12/2023

Matusalém tinha novecentos e sessenta e cinco anos, era o homem mais velho da terra e sabia que que a morte de há muito o cortejava. Mas ele, embora tivesse o rosto chupado, as mãos encarquilhadas e a boca sem dentes, estava apaixonado por outra, talvez mais velha que ele. Matusalém amava Naamá, filha de um anjo caído que vivia em pecado com as filhas Lilith na cidade que Caim havia construído, e a desejava ardentemente, sonhando deitar-se em seu colo. Uma noite, quando a morte afagava seu ralos cabelos, Naamá postou-se à sua frente, nua como no dia em que viera ao mundo, colocou-o no colo e alçou voo e levou-o à cidade de Caim, onde a luxúria era a mais elevada virtude e ela vivia com Ashiel, um anjo caído.

Naamá, lhe disse então que o mundo de Iahweh era um manicômio, que Ele cometeu um erro ao criar homem e que agora havia ordenado a Noé, o neto de Matusalém, que construísse uma arca para salvar  a família e os animais do dilúvio, mas os sábios do inferno não permitiriam que aquela água caísse. Embora Ashiel fosse um gigante e Martusalem “pequeno como um gafanhoto”, Naamá desejava seu antigo amante e deu-lhe todos os prazeres, aqueles que aprendera durante séculos em suas andança por Nínive, Sodoma, Shinar e Gomorra.

Matusalém amou-a, mas em toda à parte a “sonoridade da música era áspera” e o canto estridente e ele já não distinguia “entre os vivas proferidos pelo demônios-fêmeas e os gritos alucinados dos duendes”. Então caiu de joelhos e pediu que Naamá o levasse de volta “para a bem-aventurança da velhice e do repouso”. No dia seguinte, Matusalém não bebeu a tigela com o suco de tâmaras, como fazia todos os dias.

Quando escreveu A morte de Matusalém, a pequena obra prima que resumi para o leitor, Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de Literatura, disse que o conto lembrava que o Mal havia se tornado a arte maior do homem e, por isso, Deus teve de destruir sua obra-prima. Com uma centelha de esperança, no entanto, lembrou que a arte podia tentar “consertar os erros do construtor eterno, a cuja imagem o homem foi criado”. Talvez, mas, se o homem feito à Sua semelhança, o mais provável é que o deus que o criou traga consigo mais Mal do que Arte.

 

Crônica do livro “Dia de Lavar a Roupa dos Mendigos”, do escritor Armando Avena. Ed. Casarão do Verbo, 2015.

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