sábado, 19 de julho de 2025
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O COBRADOR – SÉRGIO FARIA

Redação - 18/07/2025 05:49

 

Eu não pago mais nada, cansei de pagar! Gritei para ele, agora eu só cobro!

Trecho do conto O cobrador, de Rubem Fonseca

 

De meu pai, sempre ouvi uma história curiosa que demorei muito a compreender. Confessava ele que, estando no Rio de Janeiro por ocasião da final da Copa do Mundo de 1950, terminou se intimidando e não compareceu ao Maracanã para testemunhar a maior derrota do futebol brasileiro.

Dizem que a história se repete e, de fato, trinta e nove anos depois, morando no Rio de Janeiro, na época em que eu cursava o mestrado na PUC, enchi-me de coragem para, na companhia de um amigo, ir ao Maracanã assistir à final da Copa América de 1989, quando o Brasil novamente enfrentaria a seleção uruguaia.

O jogo tinha, evidentemente, um sabor de revanche, razão pela qual assumiu uma importância muito além do que seria normal.

Dentre os colegas mais próximos, havia um equatoriano de alma brasileira, que adorava samba, praia e futebol, sendo um fã incondicional da nossa seleção e que, por isso mesmo, logo se escalou para nos acompanhar na ida ao estádio.

Entretanto, de primeira, descartamos a companhia do equatoriano, pois o seu indisfarçável sotaque castelhano era prenúncio de problema. A um grito seu, até que pudéssemos explicar os fatos, já teríamos sido trucidados por uma torcida enfurecida e ávida por vingança.

Mas o cara era de uma simpatia contagiante e terminamos cedendo aos seus apelos. Sem dinheiro e sem carro próprio, decidimos que iríamos os três, de ônibus, assistir o jogo na geral.

Já dentro do estádio, antes mesmo do início da partida, ainda preocupado com o sotaque do equatoriano, terminei me perdendo e, sem outra opção, sozinho, resolvi me acomodar no primeiro lugar que garantisse alguma visão do espetáculo.

O Maracanã estava literalmente lotado de verde e amarelo e assisti ao jogo em pé, alojado entre as axilas dos que me cercavam.

Não conseguia relaxar, nem tanto pela posição absolutamente desconfortável, mas sim porque, a cada minuto, inevitavelmente, me vinha à mente uma reflexão mais profunda: estava ali, diante dos meus olhos, o triste quadro das nossas desigualdades sociais. Havia uma enorme distância entre nós, verdadeiro abismo, visível, de percepção imediata a qualquer observador minimamente atento.

Sentia-me diferente naquele ambiente de pessoas completamente desassistidas pela sociedade. Fiz a mea-culpa e me vi um intruso tentando, em vão, esconder sua verdadeira condição.

Imediatamente, lembrei-me do conto O cobrador, de Rubem Fonseca e, tomado de angústia e medo, considerei a possibilidade concreta de uma súbita conscientização da massa que, reconhecendo-me diferente, partiria para cobrar, na base da violência, a dívida social, elegendo-me, inevitavelmente, como responsável por todos os seus problemas.

Ainda que estivesse vestindo roupas simples, temi ser reconhecido como um integrante das classes privilegiadas, estudante de pós-graduação em uma universidade elitista da Zona Sul.

A ameaça me pareceu evidente e, de forma ainda mais desesperada, passei a torcer por uma vitória da seleção brasileira, pois a derrota seria o fim. Era absolutamente necessário, a todo custo, evitar qualquer motivação adicional para a revolta iminente daquele povo sofrido e enganado.

Aos quatro minutos do segundo tempo, fui salvo por um gol de Romário, a quem, até hoje, sou imensamente grato. Naquele dia, o “baixinho”, sem jamais suspeitar disso, salvou a minha pele.

“Fecha-se um ciclo na minha vida e abre-se outro”.

Aproveito as mesmas palavras com que Rubem Fonseca encerra seu conto para terminar esta narrativa, pois, sem sombra de dúvida, aquela partida de futebol foi para mim uma grande lição de vida.

Naquele dia, compreendi as razões de meu pai e, desde então, passei a enxergar a realidade do problema social brasileiro com outros olhos.

 

Sérgio Faria, engenheiro e escritor, presidente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador

 

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