Não sei como cheguei aqui, mas este é o meu ambiente. Estou em uma cidade maravilhosa, toda ela subordinada ao prazer. De repente, encontrei-me em uma cidade chamada Salvador que, nesta época do ano, põe em prática todas as minhas teorias. Eu queria fundar uma sociedade baseada no desejo e não na repressão, de modo a permitir ao homem dar livre curso às suas paixões. Passei a vida tentando demonstrar que homens e mulheres são movidos pelas paixões e que, se essas paixões se transformavam em vícios, a culpa era única e exclusivamente do sistema econômico e social, que impedia seu livre curso.
Doze são as paixões que fazem de nós o que somos. Cinco delas derivam dos sentidos: a paixão de ver, ouvir, cheirar, tocar e a do paladar. Quatro resultam das relações interpessoais: o amor, a amizade, a ambição e o familismo.
Mas as paixões vinculadas à dinâmica social são as fundamentais e não devem ser contrariadas: a compósita, que determina que o indivíduo se engaje espontaneamente nas tarefas que gosta de fazer, conjugando suas paixões; o “borboletear” (papillonner), que expressa o gosto pela mudança e pela variedade, permitindo que homens e mulheres variem seus gostos, trabalhos e amores; e a “cabalista”, que particulariza o indivíduo dando-lhe lugar próprio na coletividade.
O que empobrece as sociedades são essas paixões contrariadas.
E, pensando assim, comecei a andar pelas ruas de Salvador e descobri que, no carnaval, tudo estava subordinado ao desejo e às paixões. A minha teoria da atração passional, cuja essência estava na ideia de que o prazer era o objetivo final da vida humana, estava sendo posta em prática em cada rua da cidade, em cada afoxé que desfilava, em cada bloco que passava. O carnaval de Salvador parecia provar que era possível dar curso ao desatamento das paixões, que era possível construir uma sociedade baseada no livre exercício de todas as modalidades de amor, como eu havia proposto.
Por isso, pensei que talvez, um dia, a humanidade pudesse evoluir para a harmonia plena, tornando-se uma sociedade idílica e alegre, onde o trabalho seria realizado sob a égide da ordem passional, da atração pelo que se faz.
Um olhar mais apurado mostrou, no entanto, que a festa era um microcosmo daquela sociedade: a desigualdade social estava expressa em cada canto. Uns tinham muito e outros nada, uns recebiam muito e outros quase nada, e a violência estava presente em muitos lugares, manifestando a insatisfação de todos.
Foi então que eu, Charles Fourier, ouvi os acordes do último trio anunciando o fim da festa no final da manhã de Quarta-Feira de Cinzas. Voltei, então, para o passado, sabendo que uma sociedade organizada a partir do prazer e do desejo pode até existir e ser posta em prática no carnaval, nas ruas e avenidas da bela Cidade da Bahia — mas apenas por sete dias.
Publicado pelo jornal A Tarde em 21/02/2024