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ADARY OLIVEIRA – REMINISCÊNCIAS DO TREM DE FERRO

Redação - 26/06/2024 06:53 - Atualizado 08/07/2024

O trecho da estrada de ferro ligando Senhor do Bonfim a Iaçu, na Bahia, por onde circulou o Trem da Grota, levou 34 anos par ser construída, de 1917 a 1951, funcionando até fevereiro de 1977, segundo registro da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Estação de Ruy Barbosa, onde vivi a infância, foi construída no bairro de Flores, a 3 km do centro da cidade e foi inaugurada em 1950. Foi um dia de festa na cidade e todos lamentavam porque a estação não tinha sido construída no centro urbano. A explicação era de que o chefe político da cidade não tinha permitido que a linha férrea fosse construída por dentro de sua fazenda. Fui para Flores de bicicleta e participei da inauguração transitando de trem que se exibia para lá e para cá. Ruy Barbosa era um ponto importante da ferrovia pois lá era feito o reabastecimento de água da “Maria Fumaça” por duto vindo de um dos riachos da Serra do Orobó.

A ferrovia mudou a vida da cidade e influenciou sua economia. Archimedes Oliveira, meu pai, era um comerciante que comprava produtos agrícolas da região, como mamona, ouricuri, pó de palha, farinha de mandioca, milho, e os revendia em Salvador. Ele passou a usar o transporte ferroviário para carregar das mercadorias para a Capital com uma boa redução do frete. As tropas de burro levavam a produção, parte com plantio financiada por ele, para seu armazém e os animais ficavam presos num pátio. Eu era ajudante e participava da pesagem, ensacamento, costura e empilhamento.

Em 1950, a fim de assistirem a Copa do Mundo de Futebol, Archimedes e mais dois amigos, Humberto Alencar e Hélio Araújo, tomaram o trem na Estação de Flores e foram até Belo Horizonte, de onde seguiram para São Paulo e Rio de Janeiro por via aérea, contrariando a orientação do pai de um dos dois amigos que concordou com a viagem desde que não usassem avião. Archimedes era o presidente do Flamengo de Ruy Barbosa e trouxe um jogo de camisas para o time. Eu ganhei uma bola de couro nº 1, e conseguia lugar nos babas da cidade parte por ser o dono da bola. Em outra ocasião eu fiz o percurso Salvador-Ruy Barbosa de trem. Foram dois dias para percorrer pouco mais de 300 km.

Em 1962, quando eu já era estudante de engenharia em Salvador, acompanhado de meu amigo José Geraldo Galvão, fui de trem passar o carnaval em Juazeiro. A locomotiva deslocava-se a uma velocidade de cerca de 30 km/h e seguia um traçado com muitas curvas e trechos íngremes demais. No retorno para Ruy, passando em Pindobaçu, ainda recuperando o sono dos dias de festejo, acordei com a reclamação dos outros passageiros de que o trem estava ali parado há mais de uma hora. Fui à estação, consegui uma folha de papel pautado, escrevi um protesto e segui para os vagões de passageiros para colher as assinaturas. Para minha surpresa descobri que 90% dos passageiros não sabiam assinar o próprio nome, me levando a pedir a impressão do polegar. A locomotiva que puxava o trem tinha sido emprestada para tentar colocar nos trilhos outra que havia descarrilhado. Quando o Chefe da Estação soube da mobilização liberou a locomotiva e seguimos viagem.

O traçado da via férrea era ruim e causava muitos acidentes. Entre Ruy Barbosa e Itaberaba, a rodovia de apenas 38 km era cruzada pela ferrovia 17 vezes, sem nenhuma cancela de retenção e os acidentes eram frequentes. Apesar de tudo isso, do transporte ser péssimo e perigoso, quase que totalmente bancado pelo Estado, as linhas ferroviárias nunca deveriam ter sido paralisadas. Deveriam ter sido ampliadas, atualizadas com locomotivas modernas e instalação do terceiro trilho  e transformadas no modal de transportes de cargas para as grandes distâncias.

Felizmente, as promessas de construção de novas ferrovias, como a FIOL de Ilhéus (BA) à Mara Rosa (GO), estendendo-se até o Oceano Pacífico, no Peru, abrindo um corredor bioceânico, alimentam as esperanças de que serão retomados os investimentos nesse setor de transporte. A malha ferroviária do Brasil é de pouco mais de 30 mil km e a sua extensão traria benefícios econômicos, sociais e ambientais, contribuindo para o desenvolvimento sustentável do país. Entre os principais benefícios pode-se citar a redução dos custos logísticos, o descongestionamento das rodovias, a integração regional, a redução da emissão de poluentes, a viabilização da extração de vários minerais e o estímulo ao desenvolvimento do turismo.

As historietas relembradas nessas reminiscências não são apenas saudosismos, mas é que vale a pena serem repetidas para não ficarem restritas às promessas das campanhas políticas. Quem sabe se um dia elas não se transformam em realidade, deixando de figurar apenas nas listas de sonhos!

Adary Oliveira é engenheiro químico e professor (Dr.) – [email protected]

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