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SAMUELITA SANTANA – O ESPIRITISMO SEGUNDO O GOOGLE STREET VIEW  NÃO SABE SE MÔNICA VAI JANTAR!

João Paulo - 21/12/2023 07:00 - Atualizado 08/01/2024

Quando comecei a ler “O espiritismo segundo o Google street view”, do jornalista Nilson Galvão, eram 22:40h de uma estranha segunda-feira, num desses quartos de hotel um tanto sórdido, onde fui obrigada a me hospedar, às pressas, por conta de um incidente doméstico que ocorreu e me impediu de dormir em casa. É só por uma noite, pensei, enquanto, desconfiada, passava os olhos clínicos pelo cômodo simplório, detectando o aspecto um tanto encardido do lugar.

Depois de um rápido banho – quase frio – e o estalo de uma lata de cerveja que passei a beber já acomodada na cama, me ocorreu sacar da mochila do notebook, jogada displicentemente no chão ao lado da cama, os dois livros adquiridos recentemente. O de Nilson Galvão, da Série Horizontes, publicada pela Mondrongo/2017 e o “Mônica vai jantar”, de Davi Boaventura, lançado pela Não Editora/2020.  Coincidentemente, os dois autores são, jornalistas, baianos e crias – como eu – da Facom /UFBa.

Uma boa hora para ler algo sutil, leve, interessante e acolhedor. Foi o pensamento que me dominou. Decidi iniciar pelo “o espiritismo segundo o google street view”. Logo no primeiro texto, o “metempsicose 2.0”, onde o poeta desnuda a criatura sem forma que é a cidade, encontrei de cara o quarto de hotel onde me encontrava. Estava descrito bem ali, na oitava linha do poema. Achei extraordinário, coincidente e prossegui com aquela avidez atenciosa dos que se identificam e querem surfar ainda mais em outras reflexões. Aqui tem um sopro, uma animação, uma passagem de alma, pensei!

Salteando poemas, aleatoriamente, do meio para o fim, voltando ao começo, do fim pra o início e vice-versa, fui lendo o livro quase todo, com aquela liberdade que só um livro de poesia dar, de ler o que bem se quiser e salta aos olhos sem a prisão de um enredo cronológico a seguir. Era como sacar versículos das antigas caixinhas de promessas bíblicas. As letras que vinham e voltavam poéticas diante dos meus olhos, às vezes escapando dos óculos e dançando sob a luz amarelada daquele quarto de hotel de quinta, simplesmente ne salvou da estranheza daquela noite.

Os intertítulos dessa, nada óbvia, obra poética de Nilson Galvão, permite mesmo passeios panorâmicos pela alma de leitores que tateiam certas espiritualidades, mas com aquela visão bem sólida de solo, de chão. Foi assim que fiquei surpreendida com o “38 graus”, um poema chocante de tão real e bom! E fiquei pensando: não dá mesmo para subestimar nada em nós, nada em um dia que morre, nada numa noite que chega, numa natureza quieta, nem muito menos nos pensamentos que povoam a atmosfera da cidade e sobem junto com a fumaça das xícaras de café. A poesia fala disso. E pensei: que coisa linda, que coisa real, isso dá um medo.

Mas é o medo de sempre, aquele medo de tudo, que vai pra janela e fica contemplando figuras jurássicas desenhadas pelas nuvens no céu. É assim que o bonito ritmo do poema “pterodátilo”, de Nilson, narra esse medo um tanto niilista, um tanto insone que persegue a vida. E eu, naquela estranha noite de hotel – a despeito do perrengue que me tirou de casa -, já me sentia pra lá de gratificada em ter, em mãos, aquele livro prático de folhear, em seu formato 12X18, instigante, inteligente e absolutamente provocador. Porque demorei tanto em ler uma obra completa de Nilson Galvão, já que aprecio tanto as pílulas-poéticas que ele sempre dispara nas redes? Me questionei. Mas já corrigi a falha.

Mônica vai jantar?

Me senti desperta. E motivada a conhecer o inovador estilo narrativo de Davi Boaventura, em seu “Mônica vai jantar”. Li orelhas, comentários de capa e me lembrei que, ao ser presenteada com o livro, a pessoa amiga me avisou que além de ter sido finalista em três prêmios em 2020 –  São Paulo, Minuano e AGES – a obra de Boaventura havia sido adaptada para o teatro. Com interesse aguçado iniciei a leitura, estranhando a falta de título, no suposto primeiro capítulo. Fui lendo. E matutando com meus botões que a revisão parecia ter “comido mosca”. Faltava um ponto ali, uma vírgula acolá e… me dei conta que não, não havia erros de revisão. Esse foi o estilo assumido com total coragem pelo autor, para contar a história de Mônica, uma mulher de 29 anos, que descobre que seu namorado foi flagrado, dentro de um ônibus coletivo, praticando um ato obsceno.

Sem títulos, pontos, vírgulas, interrogações ou exclamações, a narrativa segue num fôlego só, frenética, sem pausas, criando de forma estonteante uma conexão entre o leitor e os sentimentos de Mônica, uma personagem que, de repente, vê sua vida normal, moderna, programada, virar pelo avesso, transformando o homem que amava e com quem dividia a casa num absoluto estranho, desconhecido. Ao se trancar num quarto, enquanto decide se depois de tudo, vai ou não a um jantar social da empresa, Mônica vai vivenciando um misto de sentimentos, emoções, lembranças, incertezas, indagações, enquanto, de forma caótica, procura o que vestir, se maquiar, irritando-se com o telefone que toca e mensagens que chegam mudando o horário e local do jantar.

Num fluxo narrativo alucinante, a gente vai sentindo tudo ali: a aflição de Mônica, a raiva de Mônica, o desespero de Mônica, a angústia de Mônica, o não sei o que fazer de Mônica. Quando dei conta do que a leitura me causava e do looping de Mônica – que àquela altura também já era meu – achei brilhante a escrita inovadora de Boaventura, a forma de tornar verossímil e expor toda a humanidade da sua personagem. Os sentimentos de Mônica eram quase táteis para mim. Era como se ver, no mesmo quarto com ela, ou quem sabe num telão de cinema vendo a história passar. Ou num palco de teatro, absorvendo das primeiras filas da plateia as cenas, as expressões, as emoções da protagonista. Quero ver essa peça!

O dilema de Mônica, vivenciado quase que na pele, pela capacidade descritiva do autor, me fez voltar ao poema de Nilson Galvão, no seu espiritismo google street view: o “38 graus”, que nos previne a não subestimar nada, nem mesmo, como diz a poesia, um segredo, um tropeço na hora exata, no lugar exato, no ângulo exato. O drama de Mônica, tão bem escrito por Davi e o poema lúcido de Nilson, nos levam a refletir que tudo pode mudar repentinamente. Ou não. Mas se acontecer, o caminho é sem volta. Porque o que é pode deixar de ser, quem você conhece pode vir a desconhecer, pode mostrar seu pior lado e virar um estranho ser. E nada será como antes. E o que restará? A dignidade da mudança.

Refletir com esses dois talentosos escritores baianos, jornalistas, poetas, fotógrafos, foi o que melhor poderia ter me acontecido naquela estranha noite de segunda-feira, no insípido quarto de hotel, de tinta sépia.  E não, não se trata aqui de resenha, mas dos sentimentos que essas obras são capazes de produzir e de confirmar que a Bahia continua, sim, dando régua e compasso.

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