segunda, 30 de junho de 2025
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ALEXANDRE CUNHA E VANESSA KRUSCHEWSKY – PONTE SALVADOR-ITAPARICA: OS DESAFIOS DE UMA CONCESSÃO

Redação - 30/06/2025 09:51 - Atualizado 30/06/2025

A concessão da Ponte Salvador-Itaparica não é apenas um projeto emblemático da engenharia brasileira, é, sobretudo, um case jurídico, político e social que sintetiza o momento de inflexão vivido pelo setor de infraestrutura no Brasil.

Desde a promulgação da Lei nº 11.079/2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada (PPP), o modelo de PPP patrocinada tem se mostrado uma resposta sofisticada para projetos de grande vulto que não se sustentariam apenas por receitas tarifárias, reflexo da lógica ordinária de concessão.

No caso da Ponte Salvador-Itaparica, o investimento está estimado em mais de R$ 9 bilhões, revelando-se a maior Parceria Público-Privada (PPP) em curso no país, cujos elementos congregam desde inovação em estruturação contratual, até tensões de ordem fundiária e cultural que desafiam a prática jurídica cotidiana.

Tal arranjo instrumental tem por finalidade destravar um sonho antigo de integração regional baiana, conectando por via terrestre a capital Salvador à Ilha de Itaparica e, consequentemente, ao Recôncavo, ao Baixo Sul e a todo um território comumente negligenciado pela lógica do centro expandido.

O projeto, capitaneado pelo Governo do Estado da Bahia, foi concedido ao consórcio liderado pelas gigantes chinesas CR20 e CCCC, reunidas na SPE Ponte Salvador-Itaparica S.A, cuja previsão contratual é ambiciosa, pois trata de uma concessão por 35 anos para construção, operação e manutenção de um sistema viário completo, que vai muito além da ponte em si.

Decerto, o desafio não é apenas técnico, mas de governança multiescalar e de articulação institucional com impactos diretos sobre urbanismo, mobilidade, uso e ocupação do solo, turismo, meio ambiente e patrimônio imaterial. Afinal, é um projeto cuja engenharia suplanta o traçado físico: atravessa paisagens históricas, comunidades tradicionais e relações fundiárias marcadas pela informalidade, sendo capaz de alterar o eixo do desenvolvimento regional na Bahia.

Essa obra, de modo muito singular, tensiona o modelo tradicional de concessões públicas, exigindo do Poder Público e da concessionária uma postura que transcenda a legalidade estrita.

Ainda que o projeto tenha sido estruturado com arranjos contratuais sofisticados – com detalhamento de matrizes de risco, cronogramas de contrapartidas públicas, mecanismos de equilíbrio econômico-financeiro e cláusulas de performance – é no campo dos efeitos sócio-territoriais que os principais desafios se concentram. O traçado da ponte e de suas vias de acesso demanda intervenções fundiárias complexas, especialmente em Salvador, Vera Cruz e Itaparica.

O Estado da Bahia publicou sucessivos decretos de utilidade pública, amparado no artigo 5º, XXIV da Constituição Federal, buscando garantir o regular prosseguimento das obras, com previsão de indenização justa e prévia. Entretanto, o desafio não está apenas na formalização desses procedimentos, mas em lidar com realidades que escapam à lógica cartorial da propriedade.

Boa parte das áreas afetadas abriga populações em situação de informalidade fundiária, comunidades tradicionais e terreiros de religiões de matriz africana, cujos vínculos com o território envolvem dimensões afetivas, espirituais, culturais e coletivas. Há, portanto, uma dissonância entre a leitura técnico-jurídica do espaço e sua vivência social concreta.

Nesse ponto que o papel do jurídico, tanto no setor público quanto no privado, torna-se mais estratégico e, ao mesmo tempo, desafiador.

A propósito, não se trata apenas de garantir a legalidade das desapropriações, mas de construir legitimidade social, com métodos participativos, escuta ativa e sensibilidade intercultural.

A concessionária, ciente da complexidade envolvida, deverá estruturar equipes interdisciplinares – jurídicas, sociais e técnicas – para conduzir o processo com assertividade. Ainda assim, os riscos jurídicos e reputacionais em empreendimentos dessa natureza não se limitam ao descumprimento de cláusulas contratuais.

Há um campo crescente de contenciosos relacionados a direitos difusos, ações civis públicas por violação de patrimônio imaterial, e, sobretudo, litígios simbólicos que, mesmo quando não judicializados, impactam profundamente a percepção pública sobre o projeto. Em um cenário de crescente judicialização da política pública de infraestrutura, a legitimidade social se converte em ativo institucional.

Cada comunidade ou território que se sente excluído ou lesado representa, em última instância, um ponto de desgaste que pode se desdobrar em sanções administrativas, pressão de órgãos de controle ou mesmo impactos na regulação tarifária futura, em prejuízo da própria concessão e, portanto, do desenvolvimento público e social almejados.

É exatamente a dualidade entre legalidade e legitimidade que deve guiar a atuação de advogados que se dedicam a concessões públicas.

Por tal razão, para que a concessionária não fique à mercê de pressões sociais, as quais muitas vezes carecem de substrato legal e legitimidade, torna-se necessário atuar preventivamente, criando mecanismos de escuta, instrumentos de mediação e canais permanentes de diálogo com a população diretamente impactada.

Por tudo isso, a advocacia tradicional precisa se redesenhar, incorporando habilidades interdisciplinares, capacidade de articulação interinstitucional e sensibilidade territorial. Mais do que aplicar normas, é preciso interpretá-las à luz de contextos que são, muitas vezes, irredutíveis à linguagem jurídica convencional.

A ponte Salvador-Itaparica, portanto, é muito mais que um elo físico entre duas margens da Baía de Todos-os-Santos, é símbolo de um modelo de concessão que precisa estar à altura dos desafios contemporâneos, que incluem, entre outros, o reconhecimento da pluralidade dos territórios e a incorporação de práticas de governança participativa como dimensão essencial da viabilidade jurídica e política do contrato. Assim, exige-se de todos os operadores do Direito que atuam com infraestrutura soluções que ultrapassem os manuais.

Se for possível atravessar essa “ponte” com escuta, rigor técnico e compromisso social, talvez não estejamos discutindo apenas sobre o que é necessário para erguê-la, mas redesenhando as bases de um desenvolvimento que, enfim, materialize-se justo, moderno e plural.

 

Por Alexandre Cunha de Andrade e Vanessa Kruschewsky de Meirelles Boulhosa são advogados da área de Concessões e Infraestrutura do Fraga e Trigo Advogados

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