“A imaginação é a maior louca da casa”
Machado de Assis, “Dom Casmurro”
O despertar do meu interesse pela obra de Machado de Assis foi por influência de minha mãe… Ainda menino, li a coleção completa em um velha edição de capa dura que teria sido de minha avó e guardava duas assinaturas, mãe e filha… Assim, após a leitura de cada livro, eu ia colocando a minha rubrica e a data… Três gerações… Não sei onde foram parar, mas daria tudo para resgatar aqueles exemplares, as páginas soltas e amareladas pelo tempo e pelo uso…
Assim é a literatura de Machado de Assis, atemporal…
Sua genialidade já mereceria ser exaltada considerando o estilo inconfundível, a elegância dos textos bem construídos, as frases perfeitamente estruturadas e a riqueza do vocabulário.
Entretanto, para além da forma, encanta e surpreende a capacidade quase mágica com que esse gigante da literatura – não por acaso conhecido como “O Bruxo de Cosme Velho” – criava situações inesperadas, embalando, encantando e cativando seus leitores de maneira verdadeiramente mágica.
Pela limitação de espaço, citaremos apenas dois exemplos, mas note-se que, em toda obra machadiana, um mundo se nos descortina e iniciamos uma longa e deliciosa exploração da nossa capacidade de imaginação.
O romance “Dom Casmurro”, publicado no ano de 1899, criou uma dúvida que resiste ao tempo, tem provocado inúmeras discussões acadêmicas e deu lugar a ensaios de autores famosos que se debruçaram sobre o que se convencionou chamar “O enigma de Capitu”.
Afinal, Bento Santiago, narrador e personagem principal do livro, foi ou não traído por Capitu?
O que queria Machado de Assis com “Dom Casmurro”? Teria ele a intenção declarada de causar a dúvida? Imaginava o romancista que deixaria o mistério de Capitu para a posteridade?
Distanciada no tempo, a leitura de “Dom Casmurro”, hoje, enseja inúmeras outras dúvidas: seria Bento um portador de algum distúrbio mental? Há, na sua relação com Escobar, um componente homossexual?…
No segundo exemplo, o clássico “Missa do Galo” é considerado por muitos um conto erótico, mas, a bem da verdade, o autor apenas relata, em linguagem pura e no mais elevado nível, o episódio de um breve e (talvez) inocente diálogo entre o jovem Nogueira e a senhora Conceição, esposa do escrivão Menezes.
Embora, a rigor, nada de extraordinário aconteça em “Missa do Galo”, o texto sugere reflexões sobre sexualidade, sedução, fidelidade e outros temas.
Aliás, neste caso, a multiplicidade de interpretações deu lugar ao livro “Missa do Galo, variações sobre o mesmo tema”, uma coletânea de textos de escritores consagrados (Antônio Callado, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Nélida Piñon, Julieta de Godoy Ladeira e Osman Lins) que reescreveram o clássico conto a partir de diferentes prismas, imaginando a versão de cada uma das personagens envolvidas na trama.
E, como tudo que se relaciona com Machado de Assis é sempre marcado pelo mistério e pela ambiguidade, o leitor tem aqui dicas de leituras que devem ser feitas com a mente e os olhos sempre abertos para novas e surpreendentes descobertas.
Sérgio Faria, engenheiro e escritor, presidente da ALAS Academia de Letras e Artes do Salvador