Quando Jorge Amado morreu fiquei triste. Pus-me a pensar o quanto é acanhado o homem frente à morte. Jorge era um deus, deu vida a homens e mulheres e a morte o levou sem remissão. Escreveu milhares de páginas, sua palavra foi grafada em muitos alfabetos, entrelaçadas das formas mais diversas e deu aos homens tristeza, riso e alegria e, ainda assim, a morte o levou. O escritor não almeja a imortalidade, sabe que não se imortaliza quem traz a morte em si, mas tem a doce quimera de poder vencê-la através de sua obra. A literatura não se presta à morte, mas ao esquecimento que é uma forma de morte. Essa, no entanto, jamais se acercará da obra de Jorge Amado. A literatura de Jorge Amado é imortal, e Jorge, o homem, também o é, afinal, não estou eu aqui a lembrar que ele nos deixou há 23 anos naquele agosto que, então, foi o mais cruel dos meses.
A literatura de Jorge Amado foi para mim puro encantamento. Lembro que à noite, na sala em que a família assistia a imagem-padrão de uma caixa luminosa, um menino, desinteressado da novidade tecnológica, dedicava sua atenção às páginas de Mar Morto, a elegia de Jorge Amado à Cidade da Bahia, leitura recomendada, fonte de instrução e conhecimento. Mas à tarde, quando a família se distribuía pelos cantos na azáfama dos afazeres diários, o menino, agora solitário, tinha novamente um exemplar nas mãos: Tereza Batista, igual fonte de instrução e conhecimento, mas com o poder de despertar a concupiscência e fazer da imaginação um corcel que levava ao prazer. E, ao tempo em que enchia de fantasia a ânsia que o desejo impõe, Jorge Amado espertava no menino o gosto pela palavra, pela frase posta no papel, insigne e orgulhosa, fazendo a imaginação cavalgar outro potro arredio: o do propósito de ser escritor.
Mais tarde, quando a política inoculou na veia do universitário a vontade de mudar o mundo, Jorge Amado deu-lhe outro propósito: o de ser um intelectual livre. Com essa liberdade ele lutou contra a ditadura de 1964, repudiou os crimes de Stálin quando eles vieram à público e, ateu, mas ogã de Oxóssi, elaborou a emenda constitucional que garantiu liberdade de culto no Brasil. Na literatura, Jorge Amado foi um homem do povo, um escritor de putas e de outros oprimidos, como ele mesmo se definiu certa vez, mas sua obra é imensamente maior do que aquela que é escrita para satisfazer os críticos e as editoras.
O crítico literário e ensaísta José Guilherme Merquior via em Jorge Amado, o nosso Dickens, sem o irritante decoro vitoriano, mas com o poder de misturar a história dos oprimidos com “uma apologia rabelaisiana da carne e do prazer”. Jorge Amado foi o maior escritor brasileiro da segunda metade do século XX e, como o destino às vezes é sábio, talvez por isso tenha lhe destinado, na Academia Brasileira de Letras, a cadeira de Machado de Assis.
Publicado no jornal A Tarde em 09/08/2024