Estão defendendo por aí que estado e religião podem ser uma coisa só, algo como voltar à Idade Média, quando o rei era escolhido por direito divino. Seu poder vinha de Deus, o que fazia dele um rei absoluto, que podia tudo e era legitimado por um papa absoluto, representante de Deus, que tudo podia. Essa junção resultou em alguns dos maiores massacres da história. Mas no dia 5 de abril de 1588 nasceu um homem que tirou Deus dessa história, embora continuasse defendendo o poder absoluto.
Foi Thomas Hobbes, o filósofo inglês, que disse: “O homem é o lobo do homem”, para concluir que os homens nasciam maus e, se vivessem de acordo com seu livre-arbítrio, cada um buscando seu proveito próprio, terminariam por se destruir. Mas, dotados de razão, eles resolvem dar um basta a guerra entre indivíduos, firmando um pacto, em que renunciam ao seu livre-arbítrio em favor de um organismo, o Leviatã, o Estado, que vai estabelecer a ordem e garantir a propriedade. O rei continuava absoluto, mas não pela graça de Deus e sim pela vontade de todos.
Hobbes depôs a divindade, mas na sua ânsia de dar todo poder a Oliver Cromwell, admitiu o poder ditatorial e o absolutismo dominou a Europa. Uma só pessoa, o rei ou o ditador, fazia a lei, julgava e executava. Era ruim para o capitalismo nascente. Aquela ordem jurídica concentrada num só homem e que privilegiava os aristocratas e aqueles reis com suas guerras absurdas e suas cortes extravagantes não serviam a um sistema que pregava a liberdade de iniciativa. Começava a nascer, no caldo de cultura do capitalismo, o liberalismo.
E aí surge John Locke, que aceita o contrato no qual o ser humano coloca limites na sua liberdade e renuncia ao seu livre-arbítrio em prol de um Estado. Mas, diferente de Hobbes, o poder do estado é limitado pelas instituições e o rei nada mais é que uma instituição limitada pelo Parlamento que faz as leis e pela magistratura que julga. Mais adiante Montesquieu vai criar o dogma da divisão dos poderes, estabelecendo que um deles faz a lei, o outro julga e o terceiro executa.
Mas é Jean Jacques Rousseau, na França, quem dá as bases do estado moderno. Rousseau inverte a proposição de Hobbes e afirma: “o homem nasce bom é a sociedade que o corrompe”. Nessa sociedade corrompida, os nobres e o clero têm uma lei e a plebe tem outra. Rousseau exige então a igualdade jurídica: “todos são iguais perante a lei”. Rousseau renega a origem divina dos reis, renega o Leviatã de Hobbes e estabelece que todo poder emana do povo, através de um contrato social, em que as leis e a sua execução dependem da vontade geral.
São todos contratualistas, é claro, e Marx não vai aceitar a tese, mas estava estabelecida a ideia de democracia liberal. Por isso, é preciso dizer a quem defende a ditadura, e quer eliminar as cortes de Justiça e juntar estado e religião, que isso não é liberalismo.
* Armando Avena é escritor, economista e jornalista. Membro da Academia de Letras da Bahia é doutor em Ciências Sociais pela UFBA.
Publicado no jornal A Tarde em 05/04/2024