Quem entrar na Basílica de São Pedro in Vincoli, em Roma, e chegar ao centro da cúpula, bastará olhar para o lado direito para entrar em êxtase, pois verá o Moisés de Michelangelo, a mais bela escultura do mundo moderno, a obra prima do Renascimento. Com uma expressão indescritível, Moisés, que segura as tábuas com os mandamentos divinos, está lá, pronto para levantar-se. O mármore parece ter feito um pacto com o escultor, pois a perfeição dos gestos, o desenho dos músculos, a barba anelada, o manto revolto e a expressão única de quem acabou de ouvir Deus faz o espectador entrar em êxtase frente a tanta beleza. Compreende-se, então, por que, segundo conta-se, ao vê-la pronta, Michelangelo indagou, extasiado: Per ché non parli?
Mas o êxtase não tarda a transformar-se em surpresa, pois o observador vai perceber que o Moisés de Michelangelo tem chifres. Isso mesmo, um par chifres bem delineados afloram dos cabelos do profeta, mas não lhe confere uma expressão demoníaca, tampouco divina, é uma expressão extremamente humana, como se o artista estivesse a representar o novo homem que surgia na época do Renascimento. Todavia, são os meus olhos que o veem assim, pois milhões de pessoas veem a divindade naquele semblante. É natural, mas a indagação permanece: por que Michelangelo fez seu Moisés com chifres?
Este é um dos maiores mistérios do mundo das artes e sua interpretação tem gerado debates acalorados ao longo dos séculos. A hipótese mais aceita abarrota o Google e sugere que a representação de Moisés com chifres decorre de um erro de tradução da Bíblia, a chamada tradução Vulgata, que descreve o rosto de Moisés ao voltar do Monte Sinai como “cornuto”. São Jerônimo, o tradutor, não teria se apercebido que o termo “qaran”, do hebraico, que significa “com chifres”, tem também a acepção de radiante e esse era o estado de espírito de Moisés, após ter estado com Deus. A explicação é cômoda para a Igreja, mas surge muito depois da estátua estar pronta e supõe que Michelangelo teria seguido a Vulgata ipsis litteris, o que parece improvável.
Outras hipóteses afirmam que os chifres seriam a representação da luz divina que Moisés recebeu e muitas ilustrações antigas o retratam assim; ou até que seria uma forma de Buonarroti ir contra os ditames da Igreja ou de manifestar seu desagrado a Júlio II e seus sucessores, que interferiram no projeto, a ponto de ele ter dito que aquela obra fora a tragédia de sua vida.
A escultura, encomendada por Júlio II – um papa de temperamento forte que interferiu no projeto muitas vezes – para ser sua tumba, só foi concluída 30 anos após a sua morte, numa versão bem menor que o projeto original. A verdade é que até hoje não se sabe por que Michelangelo colocou chifres em seu Moisés, sabe-se apenas que ele era um homem reservado e preferia que sua obra falasse.
Publicado no jornal A Tarde em o6/10/2023