Quando pela primeira vez senti, de fato, o impacto da intolerância política durante uma troca de mensagens que se iniciou amena e empática pelo WhatsApp, eu tive, ali, a mais exata sensação de que o mundo alegre, simpático, charmoso e festivo das amizades e do coleguismo, havia escorregado brutalmente pelo ralo. Ao ouvir do colega – companheiro de tantas andanças profissionais, de momentos de admiração mútua por excelentes resultados conquistados, do convívio amistoso e divertido nos intervalos fuori lavoro -, de que para ele havia sido um “desprazer” conversar comigo, a moeda tilintou metalicamente nos trilhos da mente: o efeito da intolerância bateu no fundo e escorregou cerebrino abaixo. Isso, apenas por termos divergido de temas político-eleitorais, sem ter havido qualquer ofensa ou agressão.
Dias seguintes, de volta à outras questões, busquei emplacar nova conversa com o dileto amigo, afinal sou daquelas que cultivam e regam amizades, muitas delas de longuíssimas datas. Pois bem, o amigo sequer dignou-se a responder, decidindo estabelecer um vácuo, embora o check azulzinho tenha denunciado a sua visualização.
Um tanto taciturna, refleti não apenas sobre a flagrante imaturidade do meu colega, por sinal pra lá de balzaquiano, mas o quanto a absurda polarização contaminou os ambientes, as relações, deixando na atmosfera uma certa tristeza, um certo desgosto, um certo pé atrás, incômodos distanciamentos e uma certa infelicidade no ar. Um clima que espalha nebuloso smog, poluindo tudo com a – permitam-me Caetanear – sua feia fumaça que sobe apagando as estrelas. A intolerância não tem apenas um viés político, específico e distinto. É um nevoeiro denso, composto por cores diversas, espectros variados e efeitos ruins.
Manter serenas amizades e conviver amistosamente nesse cenário árido, buscando respeitar opiniões e pontos de vista do outro, ao tempo em que dribla patrulhas, intolerâncias e desaprovações, a fim de também fazer respeitar os seus próprios pontos de vista, opiniões e crenças, vem se tornando cada vez mais um estúpido e exaustivo desafio. Isso porque, numa suposta democracia, esse esforço nem deveria existir. A metralhadora giratória roda 360 graus dos dois lados extremos: direita e esquerda. E mesmo os que fazem “volver”, podem receber no trajeto balaços perdidos e estilhaços. Como diria um bom amigo meu, vivemos num verdadeiro estado de caos. E caUs com U, justamente por estar definitivamente fora do eixo e semanticamente incorreto
Desfazendo elos e laços, a polarização segue fincando as garras da intolerância na pele da sociedade, arranhando os ânimos entre brasileiros e outros humanos espalhados pelo mundo afora. Não basta apenas divergir, contrapor, expor seu senso pessoal de certo ou errado, suas preferências, criticar ou mesmo se posicionar de forma ostensiva contra o establishment, se essa for a sua visão cidadã ou seu senso de responsabilidade profissional. Não basta. No mundo ríspido das extremas inconformidades ideológicas, tem que haver ódio. E, se duvidar, sangue.
O chamado “discurso de ódio”, embora seja bastante utilizado como narrativa das esquerdas contra seus oponentes é, na verdade, desferido ostensivamente por todos os lados. O acirramento dos ânimos povoa o dia-a-dia de todas as partes envolvidas, vociferando com o dedo em riste supostas verdades e mentiras, ofensas, ameaças e agressões. Sem que nenhuma delas se mostre empenhada em fazer um mínimo de autocrítica.
Não tolerar a corrupção, o preconceito, desigualdades, manipulações, mentiras, meias verdades e injustiças é cabível em qualquer lado ou lugar. É legítimo. O problema começa quando a incapacidade de lidar com o contraditório, com o plural, o diverso, se sobrepõe a qualquer argumento. Negar a existência, o pensamento, as ideias do outro, é querer construir em torno de si a hegemonia do pensamento único, sem contestação, crítica ou divergência. Ou seja: instaurar a tirania, a ditadura.
E do que estamos falando aqui? De atos antidemocráticos. Sim! E que deveriam, na mesma medida dos violentos atos do 8 de janeiro, ser visceralmente combatidos em todas as instâncias de Poder, incluindo o poder da mídia e seus convenientes consórcios. Mas a visão tem que ser ampla e estendida a todos os extremos, sem parcialismo, seja de direita ou de esquerda.
Querer trocar o debate político, a exposição e suas legítimas vertentes de pensamentos por insultuosas adjetivações, reforçadas ou inventadas para depreciar – petralhas, coxinhas, fascistas, golpistas, nazistas, comunistas e outros “istas” – é tentar isolar o outro e impedir o seu direito de ser, pensar e expressar. É atacar as liberdades individuais, que são exatamente as liberdades civis asseguradas constitucionalmente para proteger todo e qualquer indivíduo, inclusive limitando a interferência do estado em suas vidas privadas, evitando assim o abuso de poder.
Afinal, al di lá dos intolerantes embates entre os mortais sem toga, não se pode desconsiderar que o ativismo praticado no coração do sistema jurídico brasileiro acaba sendo uma perigosa investida contra o estado democrático de direito e, sem dúvida, um potencializador vigoroso do “discurso de ódio” na chamada sociedade da informação. Estamos vivendo isso!