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O TIC-TAC DOS RELÓGIOS – ARMANDO AVENA

Redação - 24/02/2023 10:13 - Atualizado 24/02/2023

Artigo do escritor e economista Armando Avena no jornal A Tarde

Escrevo este artigo na quarta-feira de cinzas e as datas assim aborrecem-me sobremaneira. Não por conta do seu simbolismo religioso, nem por marcar o início da Quaresma,  mas apenas porque marca o fim de mais um carnaval e me põe contra o tempo. O dia seguinte ao meu aniversário e o 1º de janeiro tem o mesmo efeito, o de demonstrar a inexorabilidade do tempo.  Quando quero parecer engraçado afirmo peremptório: “o tempo é um canalha”, mas não há graça nenhuma na boutade, o tempo não é isso nem aquilo. O tempo é Deus e, como Ele, não pode ser desvendado. Talvez buscando enganar a si mesmo, o homem criou a ideia do Éden, um paraíso que não estava submetido ao tempo e, quem sabe um dia, voltaremos e ele e seremos como Adão que viveu 930 anos ou como Matusalém, o mais velho dos homens, que morreu aos 969 anos. O Gênesis não deixa claro se a juventude também estava incluída no pacote, de modo que fica difícil saber se valia a pena.

Certa vez escrevi um pequeno ensaio sobre o tempo que, aliás,  espero que ele me permita vê-lo publicado, juntamente com outros da mesma verve. No ensaio, constato que o homem trocou a lentidão pela velocidade, sem perceber que ao fazer isso  o que fica é a  impressão de que o tempo passa mais depressa. A velocidade nos faz esquecer do tempo, mas, na verdade,  é a lentidão a única forma, não de detê-lo pois isso é impossível, mas de dar a ele a devida importância.

Provavelmente existe uma opção filosófica nessa ânsia pela velocidade, no sentido talvez de preencher o tempo velozmente para que não se tenha tempo de perscrutar sobre o sentido da vida.  Vem-me  de imediato a ideia de que, incapaz de parar o tempo, o homem procura ignorá-lo.

Foi o grande pensador Jean Claude Carrière, poeta, cineasta e físico nas horas vagas, que percebeu  que os relógios modernos não faziam mais tic-tac e assim nossa época  suprimiu a percepção sonora do tempo.  Antigamente, os relógios estavam em toda à parte, badalavam nas praças mais belas do mundo, soavam vigorosos nas salas burguesas, brilhavam sonoros nos pulsos das pessoas.  A modernidade, no entanto, emudeceu os relógios, fazendo deles caixas numéricas que estão sempre a nos empurrar para fazer alguma coisa. Quantos passos você deu hoje? Quantas vezes postou no Instagram?  O que disse no twitter com míseras 140 palavras? Pois é, os relógios numéricos da nossa época, aqueles em que  aparece apenas um número no mostrador, obrigou os homens a viverem apenas o tempo imediato, uma série de instantes soltos em que sempre se faz alguma coisa sem saber exatamente porque se faz.

Os relógios com tic-tac e com mostradores eram diferentes, davam ritmo ao tempo e, o mais importante, diziam a hora que era e a hora que havia sido, pois aquele tic-tac lembrava o passado, a caminhada na praia às oito horas, o café com a família às nove e tudo o mais.  Hoje já não ouvimos o tic-tac dos relógios e quando acordamos precisamos olhar o celular para ter a certeza de que estamos vivos. 

Publicado no jornal A Tarde em 24/02/2023

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