É possível a arte se antecipar a vida e criar um personagem que só virá a tornar-se real muito tempo depois? Acho que sim e cada vez que vejo a famigerada figura de Vladimir Putin ocorre-me a certeza de que o escritor ucraniano Mikhail Bulgákov criou, no magistral livro “O mestre e Margarida”, personagens que esboçam a figura boçal e carrancuda do ditador russo muito antes do seu nascimento. “O mestre e Margarida”, um dos grandes romances do século XX, é considerado uma sátira devastadora da União Soviética, especialmente do período stalinista, e só foi publicado 20 anos após ter sido escrito, mas é também um romance cheio de histórias, inclusive a de Pôncio Pilatos, com direto a tudo que aconteceu com Jesus no seu julgamento perante o Sinédrio.
No início da trama, o poeta Ivan Poniriev conversa com Berlioz, editor de revista e presidente de uma associação literária típica do regime soviético, sobre um poema antirreligioso quando, de repente, surge o diabo, travestido de estrangeiro com o nome de Professor Woland, e com tal poder que não só diz como morrerá Berlioz, como prediz que Ivan irá parar no hospício. Mas não se apresse leitor, Putin não tem a força ou a sedução do diabo e não se parece com ele, mas sim com os componentes do séquito que o acompanha.
À medida que o romance avança vamos descobrir que o diabo trouxe a Moscou uma comitiva de acompanhantes para apresentar um espetáculo no Teatro de Variedades. Entre eles está um falastrão de nome Korôviev; um gato humanizado e sanguinário chamado Behemot, que adora vodka, xadrez e armas; uma jovem bruxa ruiva de olhos fosforescentes que anda nua; e Azazello, “um ruivo baixinho que tem um canino que se projeta para fora de sua boca”.
Azazello é Putin em sua mais completa descrição. É um homem de baixa estatura, vestido com uma camisa engomada, um terno de boa qualidade e sapatos de couro envernizado, mas, apesar do aprumo, uma presa sobressai-se dos seus lábios. E no bolso do colete, onde devia estar um lenço ou um relógio, Azazello, que tem olhos vazios e negros como os de Putin, traz um “um osso de galinha roído.”
Assim como há quem diga que Woland seria uma paródia de Stalin, há quem aposte que Azazello seria um dos seus burocratas assassinos. Outros sugerem que Bugálkov o descreve como sendo um demônio menor, um dos sete príncipes do Inferno, já eu, em se tratando de Putin, tenho certeza disso. No romance, Azazello é o condutor da violência e cria acidentes para assim camuflar os seus assassinatos, exatamente o que faz o ditador russo, que manda envenenar seus adversários com substâncias radioativas. Com Azazello, um demônio sem alma, Bulgákov parece ter antecipado Vladimir Putin e todos aqueles que em nome do poder e da geopolítica matam milhares de homens, mulheres e crianças.
Publicado no jornal A Tarde em 04/03/2022