Washington estava radiante naquela manhã de outono e o dia, límpido e claro, quase me levou às margens do Rio Potomac, onde se descortinam imperiais o Lincoln Memorial e o monumento em homenagem a Thomas Jefferson, para uma última caminhada antes do meu retorno ao Brasil. Mas meu voo estava marcado para as 15 horas e, antes das nove, eu precisava estar, com meu amigo Luiz Carreira, em uma reunião no Banco Mundial.
Lá, pouco antes das nove, alguém relatou o que parecia ser um acidente com um avião em Nova York, mas logo depois todo mundo já sabia que dois aviões haviam se jogado contra as torres do Word Trade Center. Às nove e meia um novo avião se jogou contra um dos ângulos do Pentágono e já então se sabia que os Estados Unidos estavam sendo atacados. Quase que imediatamente, o Banco Mundial foi evacuado, e todos desceram as escadas para ficar na rua espreitando os céus à espera de um novo avião. Mais tarde, a esperança, com seu otimismo ingênuo, fez-me fechar as malas para tentar chegar ao Aeroporto de Dulles, mas já então o aeroporto estava fechado.
Por longos sete dias, estive preso em Washington, sem que fosse possível prever quando voltaria ao Brasil e pus-me a conhecer a capital da América, uma cidade singular em que os grandes monumentos, símbolos do poder do Império, convivem com a alegria dos bares do Washington Harbour e de Georgetown e com o som das jam sessions.
Mas algo havia mudado. Os ataques às torres gêmeas e ao Pentágono pareciam ter comunicado aos americanos que a ilusão de ser dono do mundo, era apenas ilusão. Washington é uma típica cidade americana, conservadora e preconceituosa, fechada em si mesmo e na sua história, bem diferente de Nova York que, cosmopolita, se abre para o mundo e é a verdadeira capital do Império, a Roma dos tempos modernos.
Enquanto os nova-iorquinos tentavam entender o que havia acontecido, em Washington as bandeiras americanas eram desfraldadas em quase todas as janelas e os estrangeiros como eu eram vistos com desconfiança. A reação americana não veio com a tolerância e a parcimônia de Nova York, mas com a força bruta, a mesma que destruiu Hiroshima e Nagasaki e que agora resultaria na invasão do Afeganistão e depois do Iraque. Vinte anos depois, os americanos são novamente confrontados com os seus equívocos e a desastrosa retirada de Cabul foi a prova concreta de que não é a força, mas a razão a arma capaz de estabelecer uma ordem mundial mais justa.
O Ocidente não pode compactuar com o obscurantismo de guerras religiosas semelhantes as da Idade Média, mas tampouco pode enfrentá-las invadindo países, numa Cruzada moderna para impor suas crenças. Preso em Washington eu tive certeza de que a interpretação fundamentalista do Corão é o pesadelo da razão, mas também compreendi que mundo não pode combatê-la transformando a razão em pesadelo.
Publicado no jornal A Tarde em 03/09/2020