_”No Brasil, a corrupção não quer apenas impunidade, quer vingança”
Ministro do STF, Luís Alberto Barroso_
Na calada da pandemia, o torto e o capenga, quando não estão beligerando, se unem com o propósito de fortalecer ofensivas e manterem-se de pé. E o povo brasileiro, na busca ansiosa por estratégias e informações confiáveis que lhe ajude a sobreviver e a driblar os riscos de um vírus letal que já matou mais de 400 mil pessoas no país – número estarrecedor – nem sempre percebe o insidioso mundo paralelo que vem sendo construído nos bastidores do poder. É justamente nessa confusa troca de acusações, mentiras, meias verdades, conchavos e restrições que dificultam a mobilização e manifestações contrárias, que os cavilosos projetos de permanência, domínio, interesses e blindagem, encontram facilidades para gestar e parir seus aberrantes filhos.
A “deixa” largada pelo ministro Ricardo Salles, deu asas às mais subreptícias imaginações e aos mais vorazes apetites no plantio de velhacas articulações e conchavos entre poderes. A ideia agora é passar a ” boiada TODA” enquanto as atenções estão voltadas para a Covid-19, seus males, suas farpas, seus mortos, seus confrontos e invenções. Tudo capitalizado grotescamente para o ringue eleitoral de 2022, de onde, acreditam, sairá um vencedor – seja o torto ou o capenga – garantindo, de preferência, o _status quo_ de uma classe viciada em velhas práticas, obcecada em perpetuar-se no poder e disposta a derrubar, no trator, as ações de combate à corrupção e à impunidade. Naturalmente utilizando-se de manobras e aprovação de leis que reduzam, cancelem, espaventem e até impossibilitem futuras investigações.
Na verdade, um circo armado com dois palcos, encurralados por cercadinhos, estrategicamente fincados para impedir o êxodo da massa em direção a outros palcos alternativos, fechando a acústica em narrativas ensaiadas que indicam apenas o caminho da polarização, sem qualquer chances para uma possível terceira via. Um erro de prognóstico? Não. Um golpe mesmo.
A chamada PEC da Vingança é o mais recente instrumento que vem sendo engendrado, no Congresso Nacional, com o claro objetivo de intimidar procuradores da República e promotores da Justiça. Com tramitação acelerada, a PEC 5/2001 teve sua admissibilidade aprovada nesta terça-feira, 4, pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e deve ir a plenário para votação, tão logo seja analisada por comissão especial. A proposta prevê o aumento de representantes do Congresso, no Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP; permite que ministros do Supremo e do STJ integrem o órgão como ministros e juízes e, pasmem, diminui o número de cadeiras indicadas pelo próprio MP, num Conselho que é de sua prerrogativa. E mais grave ainda: A PEC quer assegurar que o Corregedor do Conselho não seja necessariamente um integrante do Ministério Público.
Trocando em miúdos: uma manobra clara para reduzir e fragilizar a autonomia do CNMP, dando maioria a representantes de órgãos externos que poderão intimidar e punir procuradores e promotores que estejam atuando em investigações envolvendo poderosos e políticos influentes. Se o Conselho, com a influência dos parlamentares que já sentam em suas cadeiras promove inéditas punições de censuras, a exemplo da que ocorreu com o ex-procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, a pedido do senador Renan Calheiros, em 2019, imagine com um maior número deles ocupando mais assentos. O anômalo é perceber como as matizes ideológicas, tão díspares e ferrenhas entre si, se misturam num amálgama perfeito de narrativas, gestos e intenções, quando se trata de buscar “harmoniosamente” a defesa de interesses comuns que, diga-se de passagem, passam ao largo dos interesses da sociedade.
A PEC da “vingança” foi apresentada pelo deputado Paulo Teixeira, petista de São Paulo e um dos mais ácidos críticos ao trabalho do MP e da Lava Jato. Porém, vem sendo “ninada” carinhosamente por pares de todas as cores e acolhida com esmero pela bolsonarista e presidente da CCJ na Câmara, Bia Kicis, do PSL de Brasília. Além do PT e do PSL, posicionam-se a favor da PEC os partidos PL, PP, PCdoB, Avante, PSD, Republicanos, PDT e, quem diria, o DEM, que inicialmente fazia obstrução à proposta mas virou a casaca e orientou seus pares a votarem favoravelmente. Todos juntos e misturados naquele empenho descrito pelo ministro do STF, Luis Roberto Barroso, quando defendeu o legado da Lava Jato no julgamento sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro e alertou sobre a infame sede dos poderosos, não apenas pela impunidade, mas por vingança contra juízes e procuradores que os investigam.
Esse ânimo de “vingança maligna” contra os defensores, ações e operações de combate à corrupção chegou a galope, pisoteando sentimentos de justiça e de esperança do povo brasileiro em viver num país mais digno, sem impunidade e com os cofres públicos a salvos de esquemas montados para pilhar o país e desviar os recursos destinados à saúde, à educação, à infraestrutura e outras áreas essenciais à qualidade de vida da população.
Os sinais de que os adeptos de malfeitos espalhados nas variadas esferas de poder não ficariam inertes e exangues diante da maior e mais relevante operação contra a corrupção no mundo, a Lava Jato, chegaram sorrateiramente mostrando garras semelhantes às que abateram a Operação Mani Pulite (Mãos Limpas), na Itália. Uma pedra que vinha sendo cantada não apenas pelos procuradores e juízes da força-tarefa, mas também por reconhecidos jornalistas, estudiosos da política, entidades e organismos jurídicos brasileiros e internacionais.
Enquanto a Operação Lava Jato trabalhava duramente para estancar a sangria dos cofres do país e trazia de volta para o erário cerca de R$ 5 bilhões saqueados pela poderosa organização criminosa que assombrou o mundo (não só pelas práticas mas pelo volume de dinheiro roubado, uma bagatela estimada em R$ 42,8 bilhões, segundo dados da Polícia Federal ), nos bastidores do poder a batalha era outra. A luta era diametralmente oposta. Ali, buscava-se encontrar instrumentos que barrassem o avanço das investigações, preferencialmente travestidos de legalidade.
Por isso, em 2019, aprovou-se no Congresso a famigerada Lei de Abuso de Autoridade, um perigoso chicote em mãos de investigados e réus, convenientemente preparado para açoitar seus investigadores e juízes. Segundo especialistas em Direito, a Lei é um atentado contra o Estado Democrático de Direito, fere a autonomia e a independência do Poder Judiciário e serve como arma para inibir agentes públicos na sua função de investigar, principalmente nas ações de combate à corrupção, já que a ideia é criminalizar condutas ligadas à Operação Lava Jato.
O controverso Pacote Anticrime proposto pelo então ministro Sérgio Moro, foi outra ferramenta manipulada com esse fim e aprovada de forma desfigurada. Várias matérias publicadas no período apontaram uma desidratação em cerca de 30% do texto original. Foram 11 pontos retirados da proposta de Moro, a exemplo da execução da prisão após condenação em segunda instância, e incluídos outros que limitaram acordos de delação premiada e da prisão preventiva, considerados importantes instrumentos nas investigações contra a corrupção. Ainda assim, o projeto foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro sem os vetos sugeridos pelo então ministro, o que mostrou a sua incoerência entre o discurso de campanha e a prática de gestão, além de, claro, a intenção de proteger o filho Flávio Bolsonaro, parlamentar sob investigação.
_Retrocesso que assombra o mundo_
O retrocesso nas conquistas contra a corrupção garantidas nos últimos seis anos pela Operação Lava, lamentavelmente deu marcha ré em mais de 30 anos, fazendo escorrer pelo ralo o extraordinário trabalho que revelou ao mundo um “quadro impressionante” de corrupção estrutural, sistêmica e institucionalizada no Brasil, como tão bem destacou o ministro Barroso, no plenário do STF. Aliás, uma das poucas vozes do supremo a tentar acender a luz da razão na Corte, ao lado do ministro Edson Fachin que, apesar de ser rendido na decisão de anular as condenação do ex-presidente Lula – réu condenado nesses processos a penas somadas em mais de 26 anos por corrupção passiva e lavagem de dinheiro -, sempre foi um entusiasta da Lava Jato e da sua importância no combate à corrupção. São vozes que ecoam no deserto da insensatez de uma robusta irmandade, empenhada em barrar o avanço da luta contra o assalto aos cofres públicos, envolvendo poderosos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
Nesse contrassenso, o STF vai assumindo um papel preponderante, alarmando não apenas a nação brasileira como também a comunidade internacional. Depois de derrubar a condenação em segunda instância, em 2019, o Supremo seguiu seu curso anulando condenações da Lava Jato, trazendo de volta réus condenados para o cenário político e colocando sob suspeição a atuação de promotores e juízes da força-tarefa Lava Jato. Mesmo, estando os processos abarrotados de provas e revisados por três instâncias do Judiciário. Entre as decisões do STF que mais estarreceram a Transparência Internacional e a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico – OCDE, o chamado clube dos países ricos, está a que limitou o uso nas investigações de informações obtidas pelo COAF, órgão essencial para o cruzamento de dados que auxiliam na luta contra a lavagem de dinheiro.
A decisão martelada pelo presidente do supremo, Dias Toffoli e que beneficiava claramente o filho do presidente, Flávio Bolsonaro e outros parlamentares investigados, repercutiu severamente e acabou sendo revogada no plenário da corte. Os fatos que indicavam flagrante retrocesso na luta contra a corrupção no Brasil, preocuparam o mundo e impulsionaram a vinda ao país de uma missão da OCDE, em novembro de No final da visita, o grupo de trabalho contra as propinas da organização divulgou um comunicado curto e grosso: “Estamos alarmados pelo fato de que tudo o que o Brasil conquistou nos últimos anos na luta contra a corrupção possa agora estar seriamente comprometido. O Brasil deveria reforçar os mecanismos anticorrupção, não os enfraquecer”.
É uma pena que a missão da OCDE não tenha passado por aqui nesse Se ficou alarmada em 2019, ficaria estarrecida agora. Na esteira da decisão do STF de anular as condenações de Lula e torná-lo livre e elegível para cometer novos atos – sem o menor respeito, diga-se, ao trabalho executado pela Lava Jato, ao povo brasileiro, suas lutas, avanços e conquistas contra os crimes de colarinho branco -, o STF foi muito além na contribuição a favor da impunidade e dos crimes de corrupção. Animados, os réus condenados da Lava Jato “pegaram ar” e já acionaram seus prepostos para, casuisticamente, utilizarem os mesmos recursos jurídicos que salvaram Lula. Réus com históricos escabrosos de formação de quadrilha e desvio de dinheiro público, como o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, o ex-deputado Eduardo Cunha e o famoso braço direito de Lula e ex-ministro José Dirceu, já estão com as mãos na cancela. A ideia agora é escancarar e “passar a boiada TODA”.
Um bom exemplo do que será essa involução é a decisão carimbada na última quarta-feira, 5, pelo juiz da 12ª Vara do Distrito Federal, Marcus Vinícius Reis Bastos. O magistrado, o mesmo que em 2019 absolveu Lula, Dilma, Palocci, Mantega e Edinho Silva, no chamado “quadrilhão do PT”, absolveu também agora Michel Temer, Moreira Franco, Eduardo Cunha, Rocha Loures, Henrique Alves, Eliseu Padilha e Geddel Vieira Lima, no chamado “quadrilhão do PMDB”. Reis Bastos não enxergou quadrilhão nenhum. Nem do PT, nem do MDB. Todos muito inocentes. Com certeza, oportunamente cego, o juiz nem viu as malas com os 51 milhões num bunker que Geddel Vieira mantinha em Salvador, indício claro de corrupção. O que ele viu foi mesmo o “abuso de direito de acusar”, acusação essa que contribui, na sua argumentação, para criminalizar a atividade política. Na visão do magistrado, pelo visto, o crime de propina e corrupção dentro da “atividade política”, não é abuso algum. Ao contrário, compensa.
Por tudo isso e outros declínios, não é à toa que o Brasil se posiciona tão desastradamente no _ranking _mundial de corrupção, divulgado anualmente pela Transparência Internacional. O Índice de Percepção de Corrupção-IPC avalia 180 países e territórios, atribuindo a eles notas de zero (altamente corrupto) a 100 (muito íntegro). Em 2020, o Brasil registrou 38 pontos, ficando na 94ª posição, exibindo a mesma pontuação de países como a Etiópia, Cazaquistão, Peru, Sérvia, Siri Lanka, Suriname e Tanzânia. E bem longe dos países que lideram o ranking com 88 pontos, como Dinamarca e Nova Zelândia, considerados altamente íntegros. Nesse naipe estão ainda a Finlândia, Suécia, Suíça, Noruega, Alemanha e Luxemburgo, enquanto o Brasil, não cansa de passar vergonha.
A continuar sua marcha retrógrada a favor da impunidade e dos corruptos poderosos, sem nada que lhe barre o caminho, a trupe da vingança, fechada em sua influente confraria, conseguirá transformar definitivamente o Brasil no país da vergonha, da indignação, passando de nação promissora à nação empobrecida, amarga, sem credibilidade e posando muito mal na fotografia do mundo.
Samuelita Santana
Jornalista
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