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SAMUELITA SANTANA – A DURA ESCOLHA DE SOFIA

Redação - 11/05/2020 09:43 - Atualizado 11/05/2020
Nos últimos dias tenho acompanhado uma notícia que me fez estarrecer. Uma matéria que arrepia, causa terror e que há alguns dias seria algo inimaginável de se pensar. Com o colapso da rede pública de saúde por conta do Covid-19 e com a rede particular já ultrapassando os 90% de ocupação dos leitos de UTI o governo do Rio de Janeiro, em conjunto com uma equipe técnica que integra membros da Secretaria de Saúde e entidades médicas como o Conselho Regional de Medicina e Academia Nacional de Cuidados Paliativos, elaborou protocolo para definir quais pacientes infectados pelo coronavírus, em estado grave, terão direito a uma vaga na UTI e ao aparelho respirador essencial para vencer a doença. Em boa linguagem: o protocolo estabelece regras que ajudarão os médicos a decidirem quem vive ou quem morre.
Haverá uma pontuação. E aqui, ao contrário das competições, quem fizer mais pontos, menos chances terá de viver. Nem acredito que isso é real. Mas lamentavelmente, é. O protocolo, que se ainda não foi está prontinho para ser publicado no Diário Oficial do Rio, vai atribuir notas ao paciente de acordo com a existência, ou não, de doenças preexistentes. Quem for portador de câncer, insuficiência cardíaca, complicações pulmonares, doenças hepáticas ou renais, ganhará de cara 4 pontos e começará a ser avaliado como carta “quase” fora do baralho. Irá então para a fila, ficando atrás de quem tem pontuação zero ou menor. Ou seja, o infectado grave que não tiver mal nenhum ou tenha uma comorbidade cuja sobrevida seja maior do que um ano. Esse último, ganha 2 pontos. Na verdade, perde por dois pontos a chance de ficar na linha de frente dos que serão atendidos de imediato. Os de pontuação zero.
Mas olha só o que nos espera! Pode haver um desempate. Sim! O tal protocolo, que o CREMERJ explica ser utilizado em hospitais do mundo inteiro e não ser um procedimento do Rio de Janeiro ou do Brasil, prevê critérios de desempate para o caso de pontuações idênticas. Gizuz! O primeiro é se o paciente já estiver ligado a um respirador. O segundo – pasmem – é a idade do paciente. Aqui os mais jovens, com até 60 anos, ficarão bem na fita e ganharão uma vaga antes dos que têm entre 61 e 80 anos. Os acima de 80 anos estarão praticamente destinados à morte. Ficarão por último na disputa por leito. E mais algumas regrinhas: profissionais que atuem diretamente no combate ao vírus terão prioridade e passarão à frente de todos. E aqui, na minha opinião, esse seria o critério mais justo. Finalmente, a vaga de um leito de UTI será decidido pela ordem de solicitação.
O que pensar desse protocolo que vem sendo contestado por especialistas e também por diversas entidades de saúde? Terrível, escandaloso, diria. Por mais que tenhamos o conhecimento e a consciência de que o avanço exponencial da doença tombou os sistemas de saúde de países mais desenvolvidos, preparados e com estruturas mais fortes que a nossa, não há como considerar esse procedimento correto ou normal. Nenhum governo será salvo desse julgamento. O de ter optado por medidas drásticas que determinem a morte de pacientes ao invés de socorrê-los para que vivam. A história não será benevolente. E, naturalmente, não estamos falando dos profissionais de saúde obrigados à essa escolha e, eles próprios, sujeitos à mesma condenação. O julgamento apontará para as gestões públicas, seus erros, acertos e irresponsabilidades.
Seguramente, os que perderam seus queridos e suas histórias – porque eles não são apenas números – não levarão em consideração se a “escolha de Sofia” se deu baseada em critérios clínicos e normas técnicas. Mesmo em estados onde o esforço, as ações e as medidas corretas foram adotadas para que o maior número de vidas seja salvo, como é o caso de São Paulo, epicentro do Covid-19 no Brasil, o julgamento não será mais complacente. E São Paulo, onde a saturação dos leitos de UTI já beira os 90%, o vírus avança e o colapso do sistema de saúde já não parece ser mais uma simples especulação, esse mesmo protocolo vem sendo avaliado para entrar em vigor, abortando as chances de vida inclusive de pessoas que, tendo os sintomas agravados da doença, mesmo não tendo comorbidades, já não figuram na faixa dos mais jovens. Esses, se o sistema colapsar total, mesmo tendo vigor, dinâmica e planos de viver por mais outros tantos anos com animação e vitalidade, já não serão prioridades. É o meu caso, por exemplo.
O mais grave? Enquanto a vida vai virando uma roleta russa nas unidades de saúde, com o país atingindo a marca dos 160.500 infectados e cerca de 11 mil mortos – eu disse 11 mil mortos em poucas semanas – o presidente da República do Brasil, Jair Bolsonaro, não esboça o menor gesto de comoção ou luto pelas vidas que se foram deixando dores e amores, e segue negando a gravidade da pandemia, criando arriscadas crises políticas com os poderes democraticamente instituídos, gerando aglomerações e incentivando a população a não acreditar na letalidade do vírus e a tomar as ruas para tocar suas vidas, como se nada fora. Para reforçar o seu total desprezo e pouco caso com as recomendações e regulamentos sanitários internacionais – adotados com severidade e prudência pelos líderes do mundo inteiro – Bolsonaro brinca em agendar churrasco com amigos e curte passeio de jet ski no Lago Paranoá, em Brasília, pertinho do Palácio da Alvorada onde habita. E para selar o leve e flutuante “evento”, clica selfies com apoiadores que o esperam no pier , no momento em que estaciona a sua veloz e saltitante lanchinha. A mensagem que o presidente crava para as gentes do país a que serve? “Morram, e daí?”

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