O grande X das pressões que vaporizam hoje entre o Congresso Nacional e o Executivo é, na verdade, o veto do presidente Jair Bolsonaro ao “jaboti” colocado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, obrigando o governo a executar a bagatela de R$ 30 bilhões em emendas impositivas que seriam distribuiídas pelo relator do Orçamento, conforme – é óbvio -, os interesses eleitorais de seus pares. Mas a fumaça quente evaporou-se para uma discussão gigante – não inocentemente – fingindo ter saído da válvula que expandia questões de legalidade sobre o vídeo compartilhado nas redes sociais pelo presidente da República, onde se faz chamamento para as manifestações do dia 15 de março.
O disparo pelo WhatsApp feito por Bolsonaro, cujo poço de produzir bobagens e infrações litúrgicas parece abismal e sem fundo, era tudo que os parlamentares precisavam para enfrentar com “pose democrática” o embate sobre a derrubada do veto presidencial que, caso ocorra, vai simplesmente conferir ao relator do Orçamento, no caso o deputado Domingos Neto do PSD-CE, toda autoridade e poder para fazer a destinação desses recursos bilionários. Ora, o Orçamento da União é administrado pelo governo federal sob a batura do presidente da República. Há então o que se perguntar: é responsabilidade do Legislativo administrar dinheiro público ou o seu papel seria o de legislar e fiscalizar?
Certo que a maioria dos recursos previstos no Orçamento já estão “carimbados” para áreas específicas, sem falar nas chamadas emendas parlamentares, justamente esses recursos indicados por deputadoes e senadores para serem aplicados em obras públicas, nos Estados. Desde 2013, ainda no governo de Dilma Rousseff, essas emendas tornaram-se impositivas. Ou seja, o governo é obrigado a liberar o dinheiro. Até aí tudo justo e acomodado para que os parlamentares, em honestos sendo, fiquem bem na fita em suas regiões, priorizando os valores para obras que beneficiem de fato a comunidade, sem lançar mão das segundas negociações eleitoreiras, procedimentos que existem e não são segredos pra ninguém, sobretudo em ano eleitoral.
O problema é que o apetite do Congresso é enorme! Em 2019 os parlamentares decidiram garantir a engorda tornando impositivas além das emandas individuais, também as emendas de bancada. E agora, na LDO, ampliam essa imposição às emendas elaboradas por comissões e pelo relator do Orçamento. E mais: determinam um prazo de 90 dias para que sejam liberadas pelos ministérios. É pouco ou quer mais? O que significa isso na prática? Que o Congresso se empodera, tira prerrogativas do Executivo e passa a determinar a alocação de R$ 30 bilhões do Orçamento de 2020. Justamente num ano eleitoral. Sopa no mel.
Com seis anos seguidos de déficit, contas encerradas em 2019 com um rombo de R$ 95 bilhões, pouco dinheiro para se movimentar dentro de um Orçamento “amarrado” , o Executivo partiu para o veto. Embora o Orçamento para 2020 seja de R$ 3.6 trilhões, apenas R$ 124 bilhões, pelos cálculos, podem ser destinados para despesas não obrigatórias. Se o veto presidencial for derrubado e os R$ 30 bilhões caírem nas graças do Congresso, esse valor baixa para R$ 96 bilhões, sendo que nem todo esse dinheiro poderá ser usado livremente pelo governo, uma vez que existem investimentos obrigatórios com teto mínimo constitucional para serem aplicados, a exemplo de áreas como sáude e educação.
Tirando o foco do “jaboti”
Em seu controverso e confuso jogo com o Poder Legislativo, ora assoprando, ora mordendo, Bolsonaro até que vinha costurando acordos sobre a LDO . Mas nesse meio tempo da queda de braço, com o prognóstico de um Congresso ainda mais poderoso movimentando outros R$30 bilhões na caixinha, a luzinha vermelha piscou nas bastidores do Planalto. Sabe-se que a portas fechadas Bolsonaro reclamou de não querer ficar “refém” do Congresso e nem ser “a rainha da Inglaterra”, sem poder de manobrar o seu Orçamento. A crise pipocou no caldeirão do Gabinete de Segurança Institucional, quando o ministro Augusto Heleno acusou o Legislativo de “chantagear” o governo e finalizar seu arroubo apertando o botãozinho do “foda-se”. Os ânimos aqui poderiam até ser aplainados não fosse a falta de senso e o eterno vício autofágico do presidente, gerando ainda mais estragos ao compartilhar chamamento para as manifestações contra o Congresso.
As reações vieram de instituições e figuras importantes condenando a conduta de Bolsonaro e abrindo alas para o Congresso falar mais grosso, desviar o foco da polêmica e baixar a bola do presidente, utilizando o caso como um ataque à democracia. O nado foi sincronizado e com as braçadas dos desafetos – do parlamento às redes sociais – o vídeo compartilhado de Bolsonaro ficou bem maior que o “jaboti” preparado para abocanhar R$30 bilhões que o governo poderia direcionar para seus projetos e inestimentos. Reações exageradas ou não, o certo é que o presidente não deveria estar chupando essa manga justo agora. A despeito das interpretações, o artigo 85 da Constituição avisa que é crime de responsabilidade atos do Presidente da República que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Poderes constitucionais das unidades da Federação.
Agora é pagar para ver a luta nesse ringue armado. O veto só pode ser derrubado com a rejeição da maioria dos deputados e senadores. Sendo que se uma das casa – Senado ou Câmara – optar pelo veto, a derrubada fica descartada. Pelo menos no Senado o Executivo conta com uma alegria: os senadores do bloco Muda, Senado, cerca de 20, já avisaram que não toparão acordo algum para derrubar o veto 52 do presidente à Lei Orcamentária. A outra alegria que o governo teria, Bolsonaro jogou balde de areia: o movimento de rua convocado pelos seus apoiadores para o dia 15 de março. Ação, diga-se de passagem, legítima, porém contraditoriamente considerada antidemocrática pelos ferrenhos defensores da liberdade de manifestação. É justamente aqui que habita a pior de todas as incongruências ideológicas: a seletiva visão de democracia. O país perde cada vez mais a paciência para essas cansativas narrativas que, aliás, só se reportam ao estado democrático de direito quando lhes é conveninente.