João José Reis é hoje um dos principais historiadores da Academia ocidental, por seus estudos sobre a escravidão africana na Bahia no século XIX. Parece exagero o dito, entretanto, não o é, corresponde à realidade do reconhecimento nacional e internacional de sua obra. Agora, aparece com um novo livro denominado Ganhadores. A Greve Negra de 1857 na Bahia ( São Paulo: Companhia das Letras, 2019 ). Um calhamaço de 400 páginas, dividido em 15 capítulos, acrescidos de prólogo e epílogo, muito bem ilustrado.
O novo livro de João Reis aponta em duas direções. Os ganhadores no século XIX eram majoritariamente africanos. E, sobretudo após a revolta dos Malês em 1835, foram perseguidos de forma inclemente, sendo a principal perspectiva expulsá-los da Bahia, fazendo-os retornar à África. A outra linha, se apoia na resistência dos ganhadores diante de tal política, sendo um dos momentos mais significativos, o que, segundo o autor, foi o primeiro movimento grevista brasileiro, envolvendo todo um setor expressivo da classe trabalhadora urbana de Salvador. Com maior significado ainda por seu ineditismo em termos de mobilização, por suas características locais e africanas. O estilo direto do autor, sem salamaleques, acrescido sempre de sarcasmo ou ironia diante das jogadas dos poderosos, é, como o foi nos outros trabalhos, pautado no caráter denso de suas afirmativas ou mesmo hipóteses, não deixando dúvidas para o leitor, até quando não tem as respostas. Nada do exposto é de mais ou de menos, daí, nem afastar o leitor, nem tampouco permitir que ele descanse em “enche linguiças” tão comum em tantos trabalhos acadêmicos.
João Reis começa demonstrando a tentativa de controle dos escravos dia e noite, em especial os ganhadores. Faz em seguida, com belas ilustrações, uma ampla radiografia do trabalho de rua. Caminhamos com o autor pelas redes de solidariedades, pelos cantos e sugestivas canções. Ao tentar destruir os cantos, o governo gerou um mercado negro, com a tentativa de controle gerando muitos conflitos. O famigerado Francisco Goncalves Martins buscou, de todas as formas, impor a voz e vez do governo provincial contra os africanos. Continuava a implacável guerra fiscal contra os africanos, em especial os libertos, e a reação pessoal, inclusive com o retorno voluntário para a África. E aí chega a “revolução dos ganhadores”: a greve negra de 1857. Não demora vem o contraponto paternalista e o fim da greve que paralisou a cidade. Daí chega o rescaldo, prosseguindo a tentativa de afastar os africanos de toda e quaisquer atividades, do transporte de mercadorias aos ofícios mecânicos. O que me deixou perplexo foram as posições de João Nepomuceno da Silva, autor elogiado por Manuel Querino. Além de criarem uma companhia de brasileiros livres para o trabalho portuário, os africanos ainda tiveram contra si os ex-combatentes da guerra do Paraguai. Porém, logo a companhia pelos péssimos serviços desapareceria, com o retorno dos cantos, mas já se abrasileirando. No décimo primeiro capítulo, ricamente ilustrado, ele mostra que a partir da década de 80 do século XIX, aparecem novas regras, com a transferência para a Polícia o controle dos ganhadores. Através do Regulamento e do Livro de Matrícula, mantinha-se o monopólio dos ganhadores, com seus capitães, sobre os fretes do Bairro Comercial, mas os africanos já não eram majoritários. Com dados à “mão cheia” sobre os ganhadores, já em muito crioulizados, no período citado, os cantos já tinham múltiplas finalidades, não apenas o carrego. Envelhecidos, os africanos perdiam o mercado do ganho, para os negros e mestiços brasileiros, em grande parte gente que vinha do interior da província, de fora de Salvador. Criterioso, o autor, apesar do declínio dos africanos, ainda vai descobrir nos 89 cantos, 24 formados exclusivamente pela gente de “além-mar”. Isso não o impede, vendo os acertos de Nina Rodrigues, de impor uma revisão crítica ao autor maranhense, em relação aos seus postulados afrocêntricos. É o momento de uma nova ideia de raça, com um “festival de cores”; sintetizando, os cantos, antes pautados na raça ou etnia, tinham a sua organização mais orientada por princípios classistas. Aparece então Porcina, a “Chapadista”, por haver vivido, antes de chegar a Salvador, na Chapada Diamantina, proprietária de inúmeros escravos e da Banda de Música da Chapada. Sem dúvidas, uma história de vida singular, repleta de peculiaridades. Avança para a dispersão e conflitos nos cantos, onde, entre outros aspectos, mostra uma inusitada aliança – mesmo momentânea – entre caixeiros e ganhadores, sendo os africanos minoritários nas desordens contumazes dos trabalhadores de rua. No seu último capitulo, João Reis aborda os “corpos marcados”. Uns, por decisão individual, com o uso de tatuagens, uns poucos com dentes limados e escarificações étnicas; outros, marcados por castigos, golpes de brigas, ferimentos de guerra, acidentes de trabalho, lembranças da violência e brutalidade que muitas vezes os envolviam.
Concluindo, explicita que os africanos organizavam-se para reagir aos ataques a eles dirigidos, assim como para sobreviver e competir no mercado de serviços e vendas, através da formação de redes e grupos pautados em identidades coletivas com dimensões étnicas e de classe. Finaliza, dizendo que com o desaparecimento da população africana, a discriminação seria dirigida para seus descendentes, na forma de um racismo travestido de cientificidade, mas ainda baseado popularmente no estigma da escravidão. Não esquecendo que nos últimos anos do século XIX, nascia uma nova ordem, com uma instituição africana, o canto de trabalho, servindo de escola para que os ganhadores brasileiros começassem a se sentir como classe trabalhadora, sem esquecer a sua condição racial.
Ao abordar o passado da nossa sociedade, João Reis enuncia os rumos de um presente ainda marcado pelo autoritarismo, exploração, discriminação e as profundas desigualdades que acompanharam todo o tempo os ganhadores africanos. Mas, respostas foram dadas no século XIX, e não faltarão no século XXI.