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SAMUELITA SANTANA – VISUALIDADES: MP DA IRRESPONSABILIDADE. JORNALISMO SEM EIRA NEM BEIRA

Redação - 26/11/2019 07:43

A história de acabar com a obrigatoriedade do diploma e profissionalização do Jornalismo não é nova. Sai governo, entra governo e a tentativa de minimizar o exercício da profissão e reduzir a importância do seu papel social de informar com qualidade, ética e com os requisitos técnicos que a atividade requer, não sai de cena e ganha agora mais um capítulo no governo Bolsonaro. Essa odisseia é longa, inacreditável e a pergunta que não se deve calar é: Porque acabar com o diploma de jornalismo? Qual prejuízo o diploma traz para uma profissão já regulamentada, com regras estabelecidas de relações de trabalho, compreendendo funções, carga horária e remuneração? Quais medos e interesses regem esse obstinado e sucessivo ataque aos jornalistas graduados e habilitados para que cumpram a função de fiscalizar, investigar, levantar, comprovar e levar informações mensuradas à sociedade?

A Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj, denuncia que o governo Bolsonaro constrói uma narrativa para deslegitimar a atuação dos jornalistas no exercício profissional e que a Medida Provisória 905/19 enviado ao Congresso ataca a profissão, os jornalistas e o produto da atividade jornalística, que é justamente a sua razão de existir: a notícia. O que é uma verdade incontestável. Mas é bom que se diga que Bolsonaro não foi e parece que não será o único a criar dificuldades para o exercício do jornalismo. Em 2006, o então presidente Lula vetou integralmente o projeto de Lei que regulamentava a profissão e ampliava de 11 para 23 o número de cargos que requeriam diploma de jornalismo. A decisão foi tomada após Lula se reunir com a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. O Projeto vetado por Lula contava com o apoio da Fenaj.

Tentativas mais sutis nos governos Lula e Dilma de controlar o exercício do jornalismo e a atuação da imprensa foram flagrantemente detectadas durante todo o período dos mandatos petistas. Projetos com nomes pomposos como o da “Democratização da Mídia”, “Marco regulatório para a Comunicação” e “Regulação dos Meios de Comunicação”, foram investidos obcecadamente, principalmente durante os 8 anos do governo Lula, mas não emplacaram. As críticas aos projetos de nomes bonitos apontavam eufemismo para mascarar o desejo de setores do PT de censurar e domar a imprensa à sua imagem e semelhança. E aqui ficou a única autocrítica que Lula fez dos seus mandatos: ” Eu tive um erro grave. Eu poderia ter feito a regulamentação dos meios de comunicação. É uma autocrítica que faço. Eu e Dilma erramos em não regulamentar a mídia”.

Já Bolsonaro, outro clássico desafeto da imprensa,  aproveitou a Medida Provisória que cria o tal programa Verde e Amarelo para acabar com o registro profissional  para jornalistas e outras 13 profissões, incluindo publicitários, radialistas, químicos, arquivistas e, na mesma canetada, guardadores e lavadores de carro. Fico imaginando aqui se o raciocínio seria o seguinte: os guardadores não precisam estudar e ter diploma pra guardar bem os carros, porque os jornalistas precisariam de diploma para cumprir bem o papel de informar? Seria essa a associação? Parece que sim! Porque em se tratando do confronto do poder com a imprensa absurdos sempre acontecem, incluindo o de igualar a atividade jornalística à funções desprovidas de qualquer necessidade de formação específica.

O texto da MP do governo Bolsonaro revoga artigos da regulamentação profissional dos jornalistas, estabelecidos no Decreto-Lei 972/1969, que preveem a obrigação do registro para o desempenho da atividade. Não se trata aqui apenas de duro golpe e desrespeito aos que se empenharam em exercer da melhor forma a profissão, consumindo anos de estudos e especialização. Trata-se também de uma tremenda irresponsabilidade do governo com a sociedade, já que, na prática, não haverá controle sobre QUEM é jornalista, abrindo-se as cancelas para que a profissão seja exercida por pessoas não habilitadas. É preciso entender que jornalismo não é literatura romântica e nem deve ser confundida simplesmente como opinião. O jornalismo pode ser opinativo mas deve ser fundamentado em fatos que requerem apuração específica, o que não tem nada a ver com emitir opiniões. Portanto, cai por terra o argumento de que o diploma restringe a liberdade de expressão. A função jornalística, sobretudo no Brasil, traz intrinsecamente o dever da formação acadêmica como forma de garantir um mínimo de qualidade profissional na execução e distribuição do produto “notícia”, afiançando, inclusive, a segurança das relações de trabalho.

ERRO HISTÓRICO

Se em alguns países não há essa exigência é preciso não perder de vista que na maioria deles, apesar de não haver requisito de formação, existe regulamentação de acesso à profissão. Na Itália, por exemplo, onde morei por 2 dois anos e meio, o acesso à profissão é condicionado ao registro na Ordem dos Jornalistas, que só é concedido após um estágio de 18 meses e aprovação num exame de proficiência. Na Grã-Bretanha o acesso se dá através de estágio em empresa jornalística ou curso preparatório do Conselho Nacional de Treinamento de Jornalistas. Em Luxemburgo é necessário licença do Conselho de Imprensa, que exige compromisso com princípios deontológicos, filosofia que trata dos deveres morais, inerentes à profissão. Nos Países Baixos o acesso é através de licença do Conselho de Imprensa. Na Dinamarca a licença é concedida pelo Sindicato Nacional dos Jornalistas e na Espanha tem que se inscrever no registro de jornalistas, ter diploma em Ciência da Informação ou experiência profissional de 2 a 5 anos.

Por isso a pergunta que não quer calar segue também para o Poder Judiciário que vem incansavelmente retirando do jornalismo o direito de ser profissional. A disputa judicial sobre a constitucionalidade da exigência do diploma começou em 2001, no governo FHC, quando a 16ª Vara federal de São Paulo concedeu liminar que suspendeu a obrigatoriedade do diploma. Em 2005, antes de o caso chegar às instâncias superiores, a liminar foi revogada pela 4ª Turma do TRF-3. Em novembro de 2006, liminar concedida por Gilmar Mendes garantiu o direito de exercer a atividade aos que já atuavam na profissão sem diploma.

Em 2009 o STF decidiu por 8 votos a 1 derrubar a exigência do diploma, atendendo a um recurso do Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo e pelo Ministério Público, contestando a decisão do TRF-3. Nessa época, o sempre “precioso” Gilmar Mendes comparou jornalista com cozinheiro, argumentando que não se pode exigir que toda comida seja feita por um cozinheiro profissional. Alguém quer comentar esse equívoco? Gilmar esqueceu que jornalismo não é um dom como o de cantar, ser artista ou uma vocação como a de padre e pastor. Qualquer pessoa pode ser intelectual e ter o dom de escrever e ainda assim não saber fazer jornalismo. Porque Jornalismo é técnica e se aprende com estudos. A construção da notícia exige, sim, rigor com a ética, critérios nos métodos e nas práticas. Para que isso ocorra é muito claro a necessidade de estudo científico, produzido em universidade, garantindo que a sociedade receba um jornalismo de qualidade.

Em 2012, a chamada PEC do Jornalista (33/2009) devolvendo o diploma aos profissionais da área, foi aprovada pelo Senado por 60 votos a 4. De lavada. Para que fosse válida, porém, deveria ser aprovada em dois turnos na Câmara de Deputados. #Sóquenão. Sete anos passaram-se e a matéria continua por lá, tramitando, aguardando criação de Comissão Temporária pela Mesa. Assim como outras de teor semelhante. O que faltou ao longo desse tempo para que os deputados federais – seja lá a que matiz pertençam – movessem esforços para apreciar a matéria e restabelecer a obrigatoriedade do diploma de jornalismo? Simplesmente total ausência de interesse e vontade política de reparar um erro histórico cometido em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal, com grandes prejuízos para a categoria, que fica às margens da lei, e para a sociedade que recebe informações não certificadas. Isso tudo num momento de interatividade digital onde, via de regra, se confunde participação voluntária com jornalismo profissional. Um erro!

Argumentar que a lentidão da tramitação da matéria deve-se à espera de um cenário mais favorável para que o número de votos para a  sua aprovação – 308 no total -, seja alcançado é, no mínimo, inaceitável. Al di lá da pressão lobista dos grandes grupos de comunicação que se beneficiam com a não obrigatoriedade do diploma, aumentando a produção a custos menores, pagando salários mais baixos a pessoas sem formação e  precarizando ainda mais o trabalho jornalístico, existem também os interesses políticos em reduzir a atuação eficiente da imprensa, no cumprimento do seu dever institucional de fiscalizar os atos do poder, criticar, apontar desvios e informar a sociedade com qualidade e transparência. Resta saber agora se a malemolência induzida do Congresso vai continuar dando as cartas ou se Medida Provisória de Bolsonaro será devolvida para o bom exercício da profissão e garantia do direito constitucional que a sociedade tem de receber informações precisas e confiáveis.

Fontes: Agência Senado | FENAJ | Observatório do Direito à Comunicação

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