Era 1979. O céu do Brasil ainda estava manchado de verde oliva, mas um raio de sol teimava em surgir no horizonte. Após anos de trevas, o verão chegava com luz: o Ato Institucional nº 5, a ferramenta maior da ditadura, havia sido extinto no final de 1978 e os brasileiros começavam a sonhar com a democracia. Era um sonho débil, afinal um general escolhido por outros generais ainda ocupava a presidência, governadores e prefeitos eram nomeados, mas, apesar disso, o ano de 1979 estava prenhe de liberdade. O povo brasileiro exigia que ela nascesse e o parto começou com a aprovação da lei da Anistia e a volta ao país de centenas de opositores ao regime militar. Brizola voltou injetando novos ares na política, Betinho, o irmão do Henfil, chegou empunhando a lança do combate a pobreza, Waldir Pires aportou na Bahia antes mesmo da anistia e Gabeira, um dos sequestradores do embaixador americano Charles Elbrick, desceu a escada do exílio anunciando a liberdade sexual e a revolução nos costumes e causando furor ao desfilar com uma sunga minúscula de crochê lilás pelas praias do Leblon.
A liberdade sexual e um certo ar andrógino também pareciam ter voltado do exílio junto com Gabeira mas eles tinham aportado muito antes com Caetano Veloso rebolando e cantando “O que é que a baiana tem” e com Gal, uma linda índia branca de calcinha, aparecendo quase nua na capa do disco Índia. Já então Caetano parecia ter como sina ser o alterego do Brasil, mas nos idos de 79 o posto ainda estava ocupado por Glauber Rocha, que estreou o polêmico programa Abertura na antiga TV Tupi para decretar, com sua verve incontrolável e maravilhosamente inconsequente, que “o cinema é a consciência nacional”. E como que avalizando o cineasta, Caetano lançava naquele ano “Cinema Transcendental” – “O melhor o tempo esconde/ Longe muito longe/ Mas bem dentro aqui” – e voltava ao palco dos festivais, cantando “Dona Culpa ficou Solteira” , de Jorge Ben, para novamente ser vaiado pelo público.
Quem ganhou o festival foi um jovem compositor de nome Dominguinhos com a música “Quem me levará sou eu”, premiada com a quantia de 1 milhão de cruzeiros Era quase nada, num país cuja inflação chegava a 80% ao ano e a crise econômica parecia treinada para vencer generais e economistas. Mas quem se importava com a economia se a liberdade estava escapando pelas frestas da porteira da ditadura. A peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, censurada durante anos pelo regime militar, tinha sido finalmente encenada e logo depois seria a vez de Calabar; a música já não era avalizada pelos censores e Gil cantava o Super-Homem – “um dia vivi a esperança de quer ser homem bastaria” – e Chico Buarque em “Pedaço de mim” fazia uma ode aos desaparecidos – “a saudade é o revés de um parto/ a saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu. Finalmente a censura fora exorcizada, os jornalistas repudiaram a mordaça e a “imprensa alternativa” deu voz ao Brasil. Enquanto isso, os sindicatos se fortaleciam e no ABC surgia o Partido dos Trabalhadores, que seria criado em fevereiro do ano seguinte, sem que se pudesse prever que com ele viria a esperança e a frustação.
Na Bahia ocorre um marco dos novos tempos. A UNE – União Nacional do Estudantes, impedida de funcionar durante os anos negros da ditadura, faz em Salvador seu Congresso de refundação o primeiro fora da clandestinidade e com o apoio do governador Antônio Carlos Magalhães que, embora eleito de forma indireta, não atendeu às recomendações do chefe do poderoso SNI, o Serviço Nacional de Informações, e cedeu o Centro de Convenções de Salvador para os estudantes. Havia algo diferente no céu daquele ano e não eram naves extraterrestes. E de repente, no Pelourinho, em uma noite de lua, ouviu-se um som tão diferente que parecia vindo de outro planeta, era um batuque cadenciado, uma mistura de samba e reggae que iria encantar o mundo. Neguinho do Samba fazia surgir o samba-reggae da Bahia e o Bando do Olodum e eles se espalham pelo mundo fazendo o próprio rei da música vir depois ao Pelourinho para reverenciá-los. E havia muito mais. No Brasil e na Bahia, os sinais estavam em toda à parte e eles mostravam o caminho da liberdade, a liberdade no pensar, na política, no sexo, na vida. 1979 foi o ano I da liberdade, mas muitos anos se passaram e muita luta foi preciso antes que ela fosse plena e ainda hoje ela não o é para muitos brasileiros. Por isso, 40 anos depois, é tempo de lembrar o quanto foi difícil conquista-la, apertar a mão do poeta e dizer: “A praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade/Cria águias em seu calor.”
AINDA 1979
E muito mais aconteceu na Bahia em 1979, ano em que foi criado esta folha, que hoje é o mais importante jornal do Norte e Nordeste do país e no qual Luiz Caldas cantou pela primeira vez nas ruas de Salvador, já grávido do Axé, o movimento que faria do carnaval da Bahia a mais importante festa do Brasil.
AS REFORMAS DE RUI E NETO
As reformas de secretariado do governador Rui Costa e do Prefeito ACM Neto não trouxeram novidades: time que está ganhando não se mexe muito. Na Prefeitura, dois nomes importantes assumem pastas estratégicas: Bruno Reis e Léo Prates. Ambos podem se cacifar para o futuro. Nas hostes do governo do Estado as principais pastas não sofreram modificações. A ida do vice-governador para a Secretaria de Desenvolvimento Econômica foi mais que acertada: João Leão está mais para a ação do que para o planejamento e é um tocador de obras cheio de entusiasmo. Já a nomeação do empresário Fausto Franco para o turismo pode ser uma injeção de sangue novo no setor. Franco tem desenvoltura, transita bem em São Paulo, nosso maior mercado, e pode surpreender.
AS RUAS DE SALVADOR
A primeira vez que vi uma escada rolante foi na Rua Chile nas lojas Sloper. A Rua Chile era a passarela de Salvador e a classe média adorava ir lá. Hoje a classe média baiana não anda mais nas ruas da cidade, trocou o prazer de fazer compras ao ar livre pelo prazer duvidoso de ficar caminhando pelas inexpressivas veredas dos shoppings. Isso é resultado das mudanças urbanas e do aumento da violência, mas é preciso resgatar esse bom hábito. Todas as grandes cidades turísticas do mundo tem ruas que reúnem lojas, restaurantes e hotéis, geralmente no entorno do centro histórico, e que atraem os turistas e os moradores da cidade. Salvador tem duas ruas que poderiam ser assim: a Rua Chile e a Av. Oceânica, na Barra. A Barra, que após a reforma tornou-se um point da cidade, e a Rua Chile que está sendo recuperada. Ambas, precisam agora que o poder público estabeleça um plano de ocupação com estímulos e incentivos a construção de hotéis, restaurantes, lojas, inclusive de grife, e equipamentos que possam atrair os turistas e a população.