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LIVROS NA GELADEIRA – ARMANDO AVENA

Redação - 13/02/2023 14:54 - Atualizado 21/12/2023

 Nova artigo do escritor e economista Armando Avena no jornal A Tarde

Não foi uma decisão fácil, mas coloquei os livros na geladeira. Não todos, é claro, apenas aqueles que, por razões de ordem física ou intelectual, precisavam ser congelados. Sob o ponto de vista físico, a razão era a minha incompatibilidade com os artrópodes, especialmente os aracnídeos e, dentre eles, os ácaros, seres insuportáveis que, embora invisíveis, possuem a extraordinária capacidade de desencadear minha irrefreável rinite alérgica. Outra espécie, as traças, havia atacado alguns livros de minha biblioteca e, refém da natureza inóspita, vi-me impossibilitado de ler alguns dos livros que eu mais amava. Evitei amaldiçoar a escuridão e, seguindo o conselho de Confúcio, fui em busca da vela. A luz estava na geladeira, mas especificamente no congelador. Garantiram-me que colocando o livro num invólucro  impermeável a uma temperatura de 15 a 20 graus negativos eu me livraria de qualquer ácaro ou traça, já que eles são feitos quase inteiramente de água. Não foi uma decisão fácil, primeiro porque me veio à mente  a  imagem daqueles bichinhos microscópicos explodindo, transformados em pedras de gelo, depois porque temi que a prática tivesse efeitos colaterais e rompesse as páginas dos meus amados livros. Mas, parafraseando Shakespeare, a coragem cresce com a ocasião, então embalei um dos livros dos Clássicos Jackson, o Fausto de Goethe, uma maravilhosa edição em pano de aniagem, com a tarja preta na borda sobrescrita com letras douradas,  e o coloquei no polo Norte. O mesmo fiz com a História da Filosofia de William Durant,  imaginando as fotos de Sócrates, Platão, Espinosa e tantos outros tiritando de frio. Dois dias depois recolhi-os e eles estavam límpidos e frescos e folheei-os sem que qualquer espirro denunciasse a existência dos perigosos artrópodes.

Também coloquei outros livros na geladeira e nem foi preciso usar o congelador. Colocar na geladeira nesse caso era uma metáfora, aliás muito usada nas relações entre amigos e parentes e que significa isolar uma pessoa, quando se está cansado dela ou algo assim. Eu estava cansado dos livros linguisticamente perfeitos, livros para eruditos, aqueles que fazem os críticos e os filólogos terem orgasmos, mas que o verdadeiro leitor, embora elogiando, pois todos o faziam, largava no meio entediado. Acho  que a literatura precisa de algo mais, além da perfeição linguística, algo como ritmo, emoção e empatia. Há livros que os críticos avaliam como perfeitos, mas o leitor luta desesperadamente para vencer algumas páginas. Perdoem-me os puristas, mas é muito mais empolgante ler a Ilíada de Homero na tradução honesta de Carlos Alberto Nunes do que na tradução complexa e rebuscada de Haroldo de Campos. A verdade é que Shakespeare, Machado de Assis e Dostoiévski estavam se lixando para o purismo da língua  ou para o tema politicamente correto e eles são a alma da literatura. “Sim, meu caro cronista, mas falta o resto. Quais livros foram para a geladeira?” Perdoe-me, querido leitor, mas respondo com as últimas palavras de um dos grandes heróis da literatura: “The rest is silence” .

Publicado no jornal A Tarde em 11/02/2023

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