O mais trágico dos assassinatos é o assassinato histórico, aquele que se pratica como um suposto meio para restabelecer a justiça ou lutar por um mundo mais igualitário. Valho-me das ideias do escritor e filósofo Albert Camus para dizer que este tipo de assassinato é aquele que se supõe necessário à história e ele é trágico, pois considera-se legitimado e admite a matança dos homens. Legitimado pela história ou por um suposto desejo de justiça, o ditador que busca o poder, o revolucionário que busca a justiça social ou o império que busca o domínio se dão um mesmo direito: o direito de matar.
Por isso aborrece-me sobremaneira quando tenta-se justificar a injustificável invasão da Ucrânia pela Rússia confrontando-a com exemplos igualmente injustificáveis, como a ocupação do Iraque ou do Afeganistão pelos Estados Unidos, como se uma barbárie pudesse justificar outra. Ou então quando aceita-se a invasão da Ucrânia argumentando uma espécie de reação da Rússia à tentativa explícita da Otan de ampliar seus domínios. É como se a geopolítica legitimasse a guerra e a matança de civis.
É provável que um militante engajado discorde e levante a bandeira do realismo político, o mesmo realismo que justificou todas as guerras e admitiu as atrocidades dos ingleses na Índia, dos belgas no Congo ou dos Estados Unidos no Vietnam e na Correa. O mesmo realismo que fez com que muitos progressistas continuassem apoiando Stalin, mesmo sabendo dos milhões de russos que foram mortos em nome de uma suposta revolução marxista. Karl Marx detestaria essa revolução que levou ao poder uma vanguarda ilegítima, apartada do povo, e transformou seu socialismo democrático num dirigismo estatal burocrático que suprimiu a liberdade.
Aliás, foi em 1951, quando Stálin ainda vivia, mas já se sabia dos crimes perpetrados pelo regime soviético, que Albert Camus afirmou no livro “O Homem Revoltado, um libelo em prol do humanismo: “quando a revolução, em nome do poder e da história, torna-se esta mecânica assassina e desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e da vida”. E então, assim como fez Jorge Amado, Camus, que foi militante do Partido Comunista e sempre se pôs ao lado das causas progressistas, renegou Stalin. E isso bastou para que Jean Paul Sartre, seu amigo pessoal, comandasse, em nome do realismo político, um verdadeiro linchamento intelectual cujo o objetivo era matar suas ideias.
Não teve sucesso. Em 1957, Camus ganhou o prêmio Nobel de Literatura e tornou-se o símbolo do intelectual livre que não admite que a defesa de ideias, mesmo as revolucionárias, seja pretexto para aceitar os crimes contra a humanidade. A invasão da Ucrânia, assim como ocupação do Iraque, foi uma escolha política que teve como base ser o “assassinato necessário à história”, mas tanto uma quanto a outra são meras formas políticas de matança.
Publicado no jornal A Tarde em 18/03/2022