Acordei lentamente nesse domingo de quarentena querendo continuar enroscada em lençóis, pijama e meias. Me estiquei com a preguiça dos que lamentam sair da zona de conforto, mas que se obrigam a levantar. Lancei um olhar pidão para a cama. “Já é tarde!” Me cobrei, ao tempo em que argumentava com os meus “alertadores”: “tarde pra quê?” Desisti do embate que travaria inútil queda de braço entre seres sabotadores e seres produtivos, ao ouvir barulhinhos pela casa lembrando que a vida, apesar de isolada, pulsava entre as paredes e estava a exigir providências e tarefas. Ainda que dominicais. Afastei a cortina e espiei pela janela, querendo checar a atmosfera que havia lá fora. O dia amanheceu simplesmente lindo por aqui! Surpreendi-me. Céu limpo, azul bebê, com nuvens branquinhas salpicando o firmamento aqui, ali, acolá.
E o sol aprumava-se alto. Apertei os olhos sob a irritante luz brilhante do celular e nocauteei. Putz! Mais de meio-dia! E ri do pensamento que veio logo em seguida: “E daí? Lamento! Fazer o quê?” Foi a deixa. Me lembrei que era quarentena, que tinha um vírus matando lá fora e ainda em que contexto a frase infeliz havia sido dita. “Que tosco! Que sórdido!”, pensei, me recordando de todo o resto e acordando de vez! Fui pra cozinha fazer uma xícara de café com canela – bem quente como gosto – e voltei pra janela querendo me animar e apreciar um pouco mais a beleza do dia.
Sorvendo bem devagar goles e goles de café, como faço sempre pela manhã, fiquei ali parada, olhando o cenário, não um tempão. Fascinada pela fotografia tão nítida em suas cores calmas e ouvindo o silêncio tão atípico para uma ensolarada manhã de domingo, foi difícil sair daquele quadro delicadamente emoldurado para atestar que, na espreita e em qualquer lugar, havia um ser invisível letal capaz de atingir centenas, milhares de pessoas. Me reportei há algumas semanas quando observei, daquela mesma janela, a algazarra divertida das crianças correndo pelas áreas do condomínio, pedalando em pequenas bikes coloridas pelo jardim e atirando-se com barulhão na piscina, espirrando água sobre adultos esticados ao sol. E foi, então, justamente aquele silêncio, aquela calmaria inusitada que desenharam de volta a bruta realidade e o duro impacto do vírus na rotina e na vida das pessoas.
Mirei em volta. Percorri o olhar pelas outras janelas das torres à minha frente. Haviam movimentos letárgicos, pequenos barulhos, ruídos de pratos e talheres, cortinas balançando ao vento e um certo cheiro de comida e tristeza no ar. Apurei o olfato. Perfume de assado na brasa. Olhei em direção ao espaço churrasqueiro do condomínio onde aos domingos famílias vizinhas convergiam para encontros animados. Vazio, cadeiras emborcadas, silêncio. Me lembrei que, por tradição, as construções por aqui incluem quase sempre churrasqueiras de varanda. Apurei o olhar. Lá estavam labaredas tostando petiscos. Fiquei observando, de longe, o som inaudível do crepitar do fogo e imaginando as novas formas que a família inventou para se reunir e manter a diversão do fim de semana sem sair de casa. Apurei a alma. Senti falta de burburinhos, de risadas, de amigos ruidosos, aglomerados, de copos batendo.
Absorta em pensamentos quase longínquos, um ruído me desperta para os riscos de uma realidade surreal. Alguém ligou a TV de casa e, mesmo sem querer, meus ouvidos jornalísticos escutaram as notícias do dia: “Com direito a chegada em helicóptero e caminhada pela praça dos Três Poderes o presidente Bolsonaro volta a gerar aglomeração, apertar mãos, abraçar apoiadores e carregar criança no colo após retirar máscara, infringindo decreto do Distrito Federal que estabelece regras e multas para quem desrespeitar o isolamento social | Oficiais da reserva apoiam ministro-chefe Heleno, atacam STF e falam em “guerra civil” | Bolsonaro posta trecho da Lei do Abuso de Autoridade provocando o ministro Celso de Mello por liberar vídeo da reunião ministerial | Trump proíbe entrada de brasileiros nos EUA / Brasil ultrapassa 360 mil casos de Covid-19 e já acumula quase 23 mil mortes…”. Meu último gole de café com canela desce frio pela garganta. Saio da janela indiscreta para, enfim, jornalizar a vida em outra tela. Dessa vez, a vida real!