

O Código Civil brasileiro está prestes a passar por uma atualização no cenário dos divórcios. Está tramitando no Senado a PL 4/2025 que visa a inúmeras mudanças no Código. Umas das que tem se destacado é a que possibilita o divórcio unilateral – solicitado apenas por um dos cônjuges – em cartório. O PL ainda precisa ir à Câmara dos Deputados e depois à sanção do Presidente da República, mas as discussões em torno do Novo Código Civil já representam um marco na garantia da autonomia individual e na simplificação dos processos de dissolução conjugal: ao reduzir burocracias e ampliar o acesso à justiça, ele fortalece o direito de escolha e traz avanços na proteção da dignidade humana – principalmente para vítimas de violência doméstica.
De acordo com o IBGE, em 2023 – os dados de 2024 serão divulgados em dezembro deste ano -, o Brasil registrou 440.827 divórcios, dos quais 27.361 foram na Bahia e 6.420 em Salvador. Hoje, os brasileiros podem se divorciar de duas formas: no modelo consensual, extrajudicial e quando o casal não possui conflito a resolver, e o modelo litigioso, onde o casal não concorda com os termos da separação e é preciso que um juiz decida sobre o que está em disputa. O Novo Código prevê a criação do divórcio unilateral, onde é suficiente que apenas um dos cônjuges vá ao cartório onde a união foi registrada para solicitar o divórcio ou dissolução da união.
“O projeto de reforma do Código Civil reafirma a ideia de que ninguém pode ser obrigado a permanecer casado e que o divórcio é um direito incondicionado. Isto confirma a possibilidade de se obter liminarmente o divórcio, ainda que fiquem pendentes debates sobre partilha de bens, guarda ou alimentos. Ele possibilita o pedido unilateral de divórcio no Cartório de Registro Civil em que está lançado o assento do casamento, com a notificação do outro cônjuge e posterior averbação do divórcio, o que torna o procedimento muito mais rápido e barato”, explica o advogado, mestre em direito e professor de direito civil, Roberto Figueiredo, sócio do escritório Pedreira Franco Advogados e Associados.
Hoje, entre os maiores desafios do processo de divórcio está o custo financeiro e de tempo que um divórcio litigioso gera, além do aspecto emocional decorrente do ambiente litigioso, especialmente em relação aos filhos ou partilha de bens. “Na minha experiência profissional, os casos que mais me marcam são os que envolvem disputa pela guarda dos filhos, especialmente quando um dos genitores, por questões de trabalho, precisa mudar da cidade. São casos sempre difíceis e sensíveis. Agora, no final do ano, com as férias escolares e o Natal, as demandas acabam aumentando também, sempre no que se refere ao direito de conviver com os filhos”, relata o advogado.
Divorciada há cerca de seis meses, Ana Maria (nome fictício) passou por um divórcio litigioso doloroso, onde a briga pelos bens com seu ex-marido rendeu longos períodos de estresse, ansiedade e insônia. “Acho que a pior parte é perceber o quanto a beleza do início do relacionamento morre no final dele. No meio de tantas brigas e provocações no processo de divórcio, lembrar o quanto era bom torna tudo ainda mais doloroso e em alguns momentos parece uma loucura total. Para piorar, nós temos um filho juntos, mas a guarda dele nem foi uma questão para o genitor”, lamenta.
Marcelo Gimba, advogado, mestre e doutor em Direito de Família pontua que desde 2002, quando entrou em vigor o Código Civil ainda vigente, o Brasil conheceu transformações profundas: novas composições familiares, digitalização da vida cotidiana, avanços nos direitos da personalidade e, principalmente, uma nova forma de pensar liberdade individual dentro das relações afetivas. “O PL tenta acompanhar esse movimento e, com acertos e críticas, ele precisa ser discutido com seriedade. O Código Civil é a espinha dorsal das relações privadas. Quando ele envelhece, toda a estrutura da vida civil fica comprometida”, afirma o advogado, que é docente do Centro Universitário UniRuy.
Mundo real
Entre contratos defasados, direitos da personalidade que não acompanham a tecnologia e institutos familiares que permanecem presos a modelos que não refletem a realidade das pessoas, a reformulação do Código Civil faz com que a lei converse com o mundo real. “O PL acerta ao incorporar decisões já consolidadas do STF) e do STJ, eliminando contradições e devolvendo segurança jurídica às relações humanas. Outro ponto positivo é a proibição de ‘acoplar’ ao divórcio unilateral outras demandas, como partilha, guarda ou alimentos. Tudo se resolve depois, o divórcio não pode ser um instrumento de barganha emocional ou patrimonial”, afirma Marcelo Gimba.
Como professor e advogado, Marcelo Gimba explica que vê essa reforma não apenas como um rearranjo técnico, “mas como uma resposta necessária a uma sociedade que mudou muito mais rápido do que as leis”. E essas mudanças também falam muito sobre de que formas a legislação pode proteger a sociedade, em especial às mulheres vítimas de violência doméstica. No que tange esse grupo, a possibilidade de pedir um divórcio unilateral irá proporcionar “celeridade e custos menores do procedimento, que ocorrerá sem qualquer necessidade de contato pessoal com o autor da violência doméstica”, aponta o advogado Roberto Figueiredo.
Enfermeira e presidente da ONG Direito de Viver (@ong_direito_de_viver) – que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica, Quele Ribeiro salienta que existem vários fatores que contribuem para que essas mulheres tolerem essa situação de violência doméstica e familiar. “A disputa pela guarda dos filhos é um dos maiores obstáculos, com boicote de pensões alimentícias, chantagem e ameaças de morte. Também há a dependência econômica e a falta de qualificação, que levam muitas mulheres a ficarem presas nessas relações. Uma outra grande preocupação é a situação dos filhos, pois separações assim atingem bastante os filhos emocionalmente”, explica Quele Ribeiro.
As mulheres vítimas de violência doméstica são um dos grupos que mais se beneficiam do divórcio unilateral, salienta o advogado Marcelo Gimba. “Quem atua na área sabe: muitos agressores se negam a assinar o divórcio justamente para manter um último controle. Quando o Estado exige consenso, ele revitimiza a mulher. Quando exige demora, ele a expõe. Quando exige diálogo, ele a coloca de volta na frente de quem a agrediu. O divórcio unilateral devolve algo fundamental, a autonomia. E não é só sobre segurança, é sobre dignidade, cidadania e a mensagem simbólica que o Direito envia: você pode sair, e não precisa pedir permissão ao agressor para isso”, afirma.
E Quele Ribeiro viu isso de muito perto com a própria mãe, que foi vítima de diversos tipos de violência. “Ela era a chefe da família, mantinha a casa e mesmo assim apanhava. Meu pai não trabalhava e engravidava as empregadas domésticas, batia na minha mãe e ela ainda tinha que sustentar esse agressor, pois quando falava em divórcio, ele à ameaçava de morte. Ela, claro, tinha muito medo, porque ele era muito agressivo, possessivo e dominador. Hoje meu pai é falecido e, graças a Deus, ela está viva, mas acredito que se tivesse continuado mais tempo com ele, não estaria mais aqui”, afirma Quele.
As ameaças que a mãe sofria só pioravam quando ela dizia querer o divórcio, e não havia muito o que poderia ser feito, pois o marido precisava aceitar que o processo fosse iniciado. “Essa mudança no Código Civil irá permitir às mulheres irem silenciosamente nos cartórios para que consigam, sem lidar primeiro com questões relacionadas a pensão, bens e guarda, ao menos alcançarem parte da liberdade que merecem. Então esse PL 4/2005 vem para realmente fazer o diferencial na vida das mulheres que sofrem violência doméstica. É puramente uma questão de liberdade”, afirma Quele Ribeiro. (A Tarde)
Foto: Uendel Galter / Ag. A TARDE



