A China se comunica por ideogramas. Na Bahia, os ideogramas chineses ainda não foram decifrados. Refiro-me a dois projetos de grande porte que estão a merecer atenção: a fábrica de automóveis da BYD e a ponte Salvador-Itaparica.
A fábrica chinesa da BYD veio para substituir a da americana Ford, desativada depois de vinte anos em funcionamento, quando a automobilística encerrou as suas atividades industriais no Brasil. Aqui, o prejuízo só não foi total porque a empresa deixou em funcionamento o seu centro de P,D&I, hoje instalado no ecossistema do Senai Cimatec, com um número crescente de engenheiros. É um dos cinco centros de desenvolvimento de produtos da empresa ao redor do mundo e proporcionou à Bahia passar a exportar serviços de alto valor agregado, atrair empregos de qualidade e gerar inovação.
Anunciada com pompa e circunstância, a fábrica da BYD prevê a produção de 150 mil veículos/ano, com a geração de 10 mil empregos e a promessa de desenvolver tecnologia, inclusive para a produção de motores híbridos, capazes de operar com eletricidade e biocombustível – solução mais compatível com a economia brasileira –, transformando a Bahia no “Vale do Silício da América do Sul”, no dizer da vice-presidente da empresa para a região.
Desde então, o início das atividades vem sendo adiado. Primeiro pelo impacto – e consequente crise de imagem –, provocada pela acusação de trabalho escravo por parte de uma terceirizada, também chinesa, já afastada dos serviços de construção da nova fábrica. Mais recentemente, operários terceirizados protestaram por atraso no pagamento de salários.
Os anúncios mais recentes dão conta de que a fábrica vai começar a produzir carros, mas no sistema SKD (Semi Knocked Down), ou seja, semidesmontados, com os veículos sendo inteiramente produzidos na China e importados para o Brasil em 26 kits integrados, que serão montados aqui, segundo o secretário estadual do Trabalho.
Somente a partir de dezembro de 2026 a produção avançará um passo, passando para o sistema CKD (Completely Knocked Down), isto é, completamente desmontado, quando são importados kits de peças e partes e a montagem é feita integralmente no local de destino, no caso, a fábrica de Camaçari.
Nesse ínterim, surgiu também a informação de que a empresa terá dois centros de pesquisas, sendo o outro no Rio de Janeiro.
Com isto, a produção brasileira está indo para as calendas, pondo em dúvida a efetiva implantação de uma fábrica na Bahia. Enquanto isto, a GWM, concorrente chinesa da BYD, já deverá iniciar em julho as operações de sua fábrica em Iracemápolis, no interior de São Paulo…
Ante essas notícias, veiculadas pela imprensa, a BYD emitiu nota, confirmando o investimento de R$5,5 bilhões em uma fábrica que terá capacidade inicial para entregar 150 mil veículos por ano e que a operação terá início com a montagem de veículos em 2025, enquanto a planta avança para a produção completa, com nacionalização progressiva dos modelos mais vendidos no Brasil. “A estimativa é que sejam criados 20 mil postos de trabalho diretos e indiretos ao longo do projeto, consolidando a planta baiana como o maior polo industrial da BYD fora da China” disse, dobrando a aposta na geração de empregos.
Este enigma desafia a imaginação dos baianos ante o elevado nível de automação – e elogiada eficiência – da indústria chinesa.
Por outro lado, desde o início causou estranheza o fato da BYD ter deixado de lado o antigo “porto da Ford” (de propriedade do Estado da Bahia), sem apresentar nenhuma informação sobre como pretende escoar a sua produção para o mercado nacional – ante a inexistência de ferrovia em condições operacionais – ou para o mercado externo.
As dificuldades dos baianos com a interpretação dos ideogramas chineses se estende à famigerada ponte Salvador-Itaparica. Licitação realizada desde 2020, contrato assinado, concessionária estabelecida, surgiu a informação de que a elevação do preço do aço por conta da crise provocada pela Covid requeria significativo ajuste no custo da obra. Uma variação claramente circunstancial e já superada.
Não obstante, novo valor foi estabelecido – bem mais elevado –, validado pelo Tribunal de Contas do Estado, parcelas depositadas em conta vinculada e todos esperavam que, com a recente ida do presidente da República e do governador do Estado à China, de lá voltassem com o aditivo contratual assinado. Ledo engano.
Embora tenham sido realizadas reuniões entre contratante e contratado, com direito a consultas online, o governador declarou ter sido pego de surpresa com cinco novas condições por parte das construtoras chinesas, entre elas a vulnerabilidade técnica, face a condições do solo. Assim, como se não bastasse a insustentabilidade econômica da ponte – demandando pesados compromissos que oneram o Tesouro do Estado – surgem agora dúvidas quanto à viabilidade técnica, incluindo nova elevação do preço da obra.
De repente, não mais que de repente, o aditivo foi assinado no último dia 4/6, sem qualquer informação quanto aos questionamentos técnicos levantados pelos chineses. Certamente o assunto voltará, daqui a um ano, quando o projeto executivo ficar pronto.
Para a Bahia e a Baía, melhor seria que os chineses houvessem sido atraídos para, ao invés da ponte, construírem um porto, a la Chancay, na poderosa Baía de Todos os Santos.
Os ideogramas parece não estarem sendo traduzidos corretamente na Bahia.
Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional. Autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.