O Nordeste imagina ter encontrado no hidrogênio verde (H2V) – o chamado combustível do futuro – um caminho para o seu desenvolvimento, em pleno e total alinhamento com as políticas globais de transição energética. Detentora de imenso potencial produtivo a partir das energias limpas – eólica e solar –, a região se considera território apropriado para a implantação de unidades voltadas para exportação, mesmo que as tecnologias de transporte ainda não estejam totalmente dominadas e disponíveis, o que pode ser feito sob a forma de amônia verde. Paradoxalmente, falta combinar com o setor de energia do governo federal.
Vamos aos fatos. O governo do Piauí festeja a autorização para instalação de um projeto de hidrogênio e amônia verde no pequeno litoral do estado. A autorização ocorreu após aprovação do Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação (CZPE), presidido pelo vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. A aprovação era necessária porque o projeto deverá ser instalado na ZPE de Parnaíba.
O empreendimento é liderado pela empresa Solatio e representa, segundo o governo do estado, um investimento de R$27 bilhões, devendo gerar cerca de três mil empregos diretos e indiretos. Contudo, a instalação ainda depende da análise do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Aí é que mora o perigo.
Ainda recentemente o ONS negou acesso ao sistema interligado de transmissão de energia para o projeto da Fortescue no porto de Pecém, no Ceará. Com investimentos previstos da ordem de R$20 bilhões e projetos de engenharia em fase de conclusão, o empreendimento esbarrou na negativa do ONS, criando insegurança jurídica para os investidores e frustração para o governo do estado. A alegação é falta de capacidade do sistema de transmissão no Nordeste.
E imagine-se que as unidades destinadas à produção de hidrogênio verde estão alinhadas à Missão 5 do programa Nova Indústria Brasil (NIB), que incentiva a bioeconomia, a descarbonização e a segurança energética…
Abandonado por aqui, o Ceará está em busca de entendimento com empresas chinesas para, mediante parceria público-privada (PPP), viabilizar a construção das linhas de transmissão de que necessita. Mas esta solução não prescinde do aval prévio dos órgãos do Ministério das Minas e Energia. E aí é que está o problema.
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Trabalhando há anos para atrair projetos de hidrogênio verde – em face das claras e indiscutíveis vantagens competitivas da Região – os governadores nordestinos têm sido surpreendidos quando tomam conhecimento que não contam com a garantia do suprimento necessário para entregar a energia limpa, muitas vezes produzida em seus próprios estados, nos pontos de consumo onde é demandada. Isto porque os órgãos de planejamento e gestão do setor de energia – o próprio Ministério das Minas e Energia, o ONS, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) – não estão considerando promover leilões de linhas de transmissão e subestações que atendam a esses empreendimentos, sequer a longo prazo!!!
Como se não bastasse, o ONS tem imposto cortes de geração às usinas solar e eólicas, causando perdas aos investidores, alegando que – pasme-se – o Nordeste estaria tendo um desempenho melhor do que o esperado…
A partir da instalação de capacidade elástica de geração de energias limpas, o Nordeste vislumbrou a oportunidade de, finalmente, romper o nível histórico de 13% de participação no PIB nacional, mediante a atração de unidades produtoras de hidrogênio, data centers e produção de fertilizantes a partir da amônia, todos demandantes de energia. Debatem-se, agora, com a resistência dos órgãos do setor elétrico, que não acreditaram na aposta da Região e continuam trabalhando, insistente e equivocadamente, com a diretriz de transferir para o Centro-Sul do país o excedente de energia gerada.
Assim, o Nordeste encontra-se em uma situação verdadeiramente kafkiana: tem energia de sobra, mas o que lhe impõem é exportar o excedente para outras regiões. Tem capacidade instalada, mas limitam o volume de produção para não provocar fluxo reverso na rede. Quer consumir, mas lhe negam linhas de transmissão e subestações. Só no Brasil! Será boicote? Se não é, parece.
Mais grave é que, enquanto o Ministério das Minas e Energia promove a implantação dos “linhões” de transmissão para levar a energia produzida no Nordeste para o Centro-Sul do país, a EPE não estuda, a ANEEL não leiloa e o ONS contém a produção das energias limpas no Nordeste, ao mesmo tempo em que nega acesso aos projetos que querem consumí-la.
Tais projetos são decisões privadas que somam elevados volumes de investimentos, envolvem empresas globais, incluem clientes que precisam tomar decisões de suprimento, incidem prazos de médio a longo, e que aqui tropeçam em falta de planejamento, ineficiência e, porque não dizer, responsabilidade. Estes investidores têm outras alternativas onde colocar os seus recursos e não podem ficar esperando que, no Brasil, os órgãos públicos se entendam.
Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional. Autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.