Lendo o irretocável texto da jornalista pernambucana Ana Dubeux no Correio Brasiliense de 24 de novembro, revejo as cenas de Ainda Estou Aqui, filme dirigido por Walter Salles, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, recuperando memórias de um período desaventurado da história recente do Brasil, o qual todos devemos nos comprometer em jamais permitir o seu retorno.
Assisti três vezes ao filme, não só pelo rigoroso e fiel diálogo do enredo com a realidade, ou da superlativa direção e do elenco, magnificamente protagonizado por Fernanda Torres, por Selton Mello, mas como pela finalização delicadamente magistral de Fernanda Montenegro.
Ainda Estou Aqui é, certamente, um dos filmes mais impactantes e emocionantes que assisti. Narra a estória da família Paiva. Rubens, interpretado por Selton Mello, e Eunice, por Fernanda Torres, suas quatro filhas e um filho, durante o período em que a ditadura militar tomava proporções de extrema crueldade e sordidamente descontroladas.
Em janeiro de 1971 o ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva foi sequestrado, torturado e assassinado nos porões do DOI-CODI no Rio de Janeiro. Eunice, e sua filha Eliana, também são levadas (encapuzadas) para depor forçosamente. Eliana, então com apenas 15 anos, fica 24 horas presa, enquanto Eunice, permanece por 12 dias em cela escura submetida aos requintes de crueldade, como de praxe nos protocolos de tortura do regime.
Nas três vezes que assisti ao filme, algumas cenas me puseram atônito, estupefato! O sequestro de Eunice e sua filha Eliana, os doze dias de Eunice em cela escura, sem direitos elementares de dignidade humana, afrontaram-me brutalmente. A abordagem policial militar vivida pela filha mais velha, Vera Silvia, revelam a estupidez praticada pelas forças militares daquela época. O filme me leva a reviver momentos terríveis da minha geração, e muito sensíveis da minha própria vida.
Nasci em 1961, tendo, portanto, vivido o desencanto e a distopia da ditadura militar, quer seja na infância, na adolescência, e no início da vida adulta, dado que o fim do regime de exceção somente ocorreu, oficialmente, em 1985.
Sou filho de preso-político! Em 1964, aos 3 anos de idade, junto à minha mãe e minhas três irmãs mais velhas (6, 7 e 9 anos), tivemos meu pai levado da família, ficando preso e desaparecido por longos 45 dias. Esteve por muitos dias no presídio Frei Caneca no Rio de Janeiro, à época, um temido centro de detenção de presos-políticos.
Meu pai, ainda muito jovem, aos 37 anos, era presidente do CNP (Conselho Nacional de Petróleo), portanto, pessoa do gabinete do presidente João Goulart, com elevado protagonismo na campanha do “Petróleo é Nosso”, motivos suficientes para que os golpistas o derrubassem!
Concomitante ao golpe militar e a prisão do meu pai, a separação dele da minha mãe tornou todo aquele pesadelo em um martírio ainda maior para nossa família.
Voltamos para Salvador para a casa dos meus avós maternos, o abrigo seguro para um novo recomeçar. Na década de 70, minha mãe se casara novamente e, em 1974, mudávamos para o Recife. No convívio com meus colegas de escola não entendia o porquê da não compreensão de muitos deles sobre o que vivíamos naqueles tempos. Passei a ter medo de falar certas coisas nas casas dos novos amigos, pois não sabia ao certo se havia algum risco naquelas conversas.
Vivi uma adolescência provocadora e vigorosa, tendo ingressado em economia na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), quando fui rapidamente capturado pela política de então, participando do diretório acadêmico e do movimento estudantil. O ônus ficava para as entregas acadêmicas, que frequentemente eram trocadas pelas assembleias, encontros estudantis, e pautas políticas, que terminavam varando a madrugada.
Era o ano de 1980. Ainda que vivêssemos os estertores da ditadura militar, convivíamos com elementos infiltrados, os remanescentes informantes, “alunos” que de repente surgiam e, da mesma forma que chegavam, desapareciam…
Nunca esquecerei de um desses infiltrados que veio do Rio de Janeiro para a UFPE. Já no primeiro dia o identificamos. Assim como a ditadura tinha seus métodos de nos rastrear, nós também tínhamos os nossos para identificar seus informantes.
Nossa tática de contra-ataque era levá-los para um dos nossos encontros extra-acadêmicos, compostos por conversas e projetos de um Brasil totalmente diferente daquele que qualquer dedo-duro estava imerso. Quanto ao paraquedista carioca, deve ter demonstrado na caserna seu descontentamento, vindo a ser punido com uma nova transferência.
Pouco tempo depois, deixei economia para cursar administração na UPE (Universidade de Pernambuco), graduando-me em 1985. Nesse mesmo ano, respirando novos ares da redemocratização, advindos de movimentos políticos-populares, como o Movimento das Diretas Já, Tancredo Neves é eleito presidente da República pelo PMDB, ainda por via indireta, contra Paulo Maluf (PDS), no Colégio Eleitoral.
Ao tempo em que vivíamos a euforia da eleição de Tancredo Neves e da inauguração da redemocratização, com o retorno dos exilados em 1979, e eleições diretas que viriam a ocorrer em 1989, fomos tomados pela doença e morte de Tancredo, em 21 de abril de 1985, assumindo o seu vice José Sarney (ex UDN, ex-ARENA, ex-PFL).
Estávamos em um grupo de amigos da universidade em um bar no bairro da Torre, no Recife, quando Antônio Britto, porta-voz de Tancredo, anunciava a sua morte. O Brasil desabou diante da TV, todos choravam copiosamente. Indagávamos se depois de tudo que vivemos e que sofremos, poderíamos ter lutado em vão!
O agrupamento da resistência, contudo, estava formado, e fortemente posto para que uma Assembleia Nacional Constituinte se formasse e, em 1988, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB), o Senhor das Diretas, promulgava a Nova Constituição do Brasil: a Constituição Cidadã.
Aquele que arquitetou junto a Ulysses Guimarães e tantos outros brasileiros extraordinários a Nova República, não a viu ser instalada.
Ainda Estou Aqui nos trouxe a dor vivida naquela época, mas também nos fez orgulhosos por termos resistido, por termos reconquistado a liberdade democrática através das gerações que foram, de alguma forma, coadjuvantes durante duas décadas de ditadura militar. Ainda Estou Aqui além de ser um filme de excelência, possibilita compartilhar com as novas gerações, de forma lúcida e equilibrada, o que vivemos naqueles tempos de terror.
O filme é de grande importância para a boa compreensão da nossa história, dado que a idade média dos brasileiros da atualidade é de 35 anos, ou seja, jovens que não viveram ou estudaram o ocorrido nos tempos de chumbo no Brasil por longos e tortuosos 21 anos.
Quanto a mim, vi na Eunice representada impecavelmente por Fernanda Torres, a força e a determinação que vivemos em minha mãe, em situação análoga, com quatro filhos pequenos no Rio de Janeiro, enfrentando a torturante luta para encontrar meu pai e manter a lucidez junto aos seus filhos em um momento de extremo enfrentamento e absoluta insegurança para todos.
O roteiro de Ainda Estou Aqui é primoroso, a direção de Walter Salles é excelente, e a atuação fabulosa de Fernanda Torres é digna do Oscar, que espero lhe seja honrado, por ela, e por sua mãe, Fernanda Montenegro.
Com a afeição, zelo e o respeito que me permito escrever este artigo, sou tomado de ainda maior reverência por cada uma das histórias (e estórias) que viveram essas, e tantas outras centenas de famílias, mais precisamente 434 mortos e desaparecidos durante a repressão e tortura durante a ditadura.
Vi na fortaleza de Eunice, a luta da minha mãe, tendo sido protagonista em tudo que fez! Mulher de preso-político desaparecido por mais de um mês em 1964, morando no Rio, formada em Letras, professora, com apenas 31 anos, com quatro filhos ainda crianças, amorosa com todos nós, mantendo-se firme, como mulher guerreira e inabalável!
Mesmo tomado pela robustez das emoções e lembranças de tudo que vivemos e revivemos em Ainda Estou Aqui, com orgulho e regozijo, reconheço a dádiva de ter nascido filho de Marily Flora! Sem a sua grandeza e equilíbrio, o nosso enredo teria sido, certamente, outro!
Carlos Cesar Meireles Vieira Filho, é Mestre em Administração de Empresas pela UFBA/BA; MBA em Economia e Relações Governamentais pela FGV/SP; Pós-Graduado em Marketing e Bacharel em Administração de Empresas pela UPE/PE.
Com 37 anos de vida profissional como trader para a América Latina, executivo sênior em operadores logísticos e portuários, cofundador e ex-presidente de entidade setorial, é conselheiro e consultor de empresas para desenvolvimento de novos negócios, relações governamentais e fusões e aquisições.
É sócio-diretor da TALENTLOG – Consultoria e Planejamento Empresarial Ltda.