A maior das invenções humanas foi a lei. Sem ela não haveria civilizações, mas, apesar disso, uma parte da humanidade parece desejar ardentemente o retorno a um mundo sem leis, ou seja, ao caos. Recentemente, um cidadão, recém-emancipado pelas redes sociais, indagou-me, desafiador: Por que preciso cumprir a lei?
A fadiga às vezes domina-me o espírito ao ver as bobagens que andam por aí e pensei em apenas informar ao meu interlocutor que o Estado, que possui a prerrogativa de fazer, julgar e executar a lei, detém o poder de polícia e que só isso já explicaria por que ele precisa cumprir a lei. Mas fui adiante e tentei lhe fazer ver que a evolução humana que, já sabemos, não segue em linha reta, pelo contrário, tem avanços e retrocessos ao longo dos séculos, não pode prescindir do mais importante instrumento civilizatório criado pelo homem: a lei.
Nada se pode construir, quando não existe um código de regras que orientem a comunidade e que impeçam, no dizer de Thomas Hobbes, que “o homem se torne o lobo do homem”. A lei é a maior invenção humana e sem ela ainda seríamos neandertais.
O que buscava o profeta Moisés quando, em meio ao caos em que se encontrava seu povo, subiu ao Monte Sinai para orar ao seu Deus? Buscava leis, leis que pudessem limitar o homem, que desse limites aos homens e mulheres do seu povo. E Deus lhe deu as tábuas da lei, com as quais vai fundar uma nação.
Muito antes dele, em 1750 a.C., o rei babilônico Hamurabi criou um código para governar a Mesopotâmia e, desde então, as civilizações foram criadas sob o manto protetor das leis. E ainda hoje as civilizações mais avançadas estão abrigadas sob esse manto, que se constitui num código de leis, não mais dado por Deus, mas pelo povo e que se chama Constituição. Meu interlocutor não ficou satisfeito: Se é assim, por que dividir o poder?
Lembro-lhe, então, do rei Salomão, que concentrava todo o poder, e das duas mulheres que a ele se apresentam dizendo, cada uma, ser mãe de uma mesma criança e pedindo sua deliberação. Salomão desembainha sua espada e decreta que vai cortar a criança ao meio e dar metade a cada uma. Uma das mulheres prefere então que o rei dê seu filho à outra, mas não o mate. E então ele dá a criança a mulher que renunciou ao filho. Salomão faz a lei, julga e ele mesmo executa. Mas, imagine o leitor, qual seria o final da história bíblica se nenhuma das mulheres renunciasse a criança.
É assim, quanto se concentra o poder na mão de um só homem ou de uma só instituição, não há ninguém para ponderar, para propor uma decisão mais razoável, para contrariar a vontade do todo-poderoso, para impedir que uma criança seja cortada ao meio. É preciso dividir o poder, para que o poder limite o poder, diria Montesquieu. E assim, dividido, o poder nunca será total, será independente, mas terá que buscar a harmonia.
Publicado no jornal A Tarde e, 06/09/2024