quinta, 21 de novembro de 2024
Euro 6.0939 Dólar 5.8149

A MÁQUINA DE MATAR O SILÊNCIO – ARMANDO AVENA

Redação - 23/08/2024 08:40 - Atualizado 23/08/2024

Entre as mudanças que introduziu no mundo, a modernidade empenhou-se em disseminar duas delas: o amor à velocidade e o horror ao silêncio. A primeira tornou-se uma característica do mundo moderno e fez do homem um ser que está sempre em movimento, sempre precisando fazer alguma coisa o mais rápido possível. O efeito colateral do amor à velocidade é um sentimento de que o tempo está passando muito rápido, ainda que essa rapidez seja decorrente do fato de que estarmos fazendo mais coisas no pouco tempo que dispomos, e uma sensação de que a vida está se esvaindo velozmente.

Além disso, o amor à velocidade compromete a contemplação e a possibilidade de realizar o que se deseja serenamente, singrando lentamente as águas do tempo. A arte e a filosofia são em essência inimigas da velocidade e, talvez por isso, ultimamente a modernidade esteja tão avessa aos grandes filósofos e à grande arte. Dá vontade de lembrar a história de Chuang-Tsê, exímio pintor, a quem o rei pediu que desenhasse o mais belo de todos os caranguejos. Para fazê-lo, disse ele, preciso de cinco anos. Passados cinco anos, nem um traço havia no papel e ele pediu mais cinco anos. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, pintou o mais perfeito caranguejo que jamais se viu. A história foi lembrada por Italo Calvino em uma das suas célebres conferências na Universidade de Harvard nos anos 80.

Mas o meu tema não é o amor à velocidade e sim o horror ao silêncio que está prestes a se transformar no maior suplício da humanidade. A modernidade aliou-se ao barulho e de tal maneira que se tornou impossível viver em silêncio. Em toda a parte, há um carro buzinando, uma televisão estrídula, um som nas alturas, uma máquina estrepitando em nossos ouvidos, um grupo de pessoas gritando e por aí vai. E, como se não bastasse, os humanos criaram o celular, a máquina de matar o silêncio, como aquelas que exasperavam Calvino mesmo antes da era dos telefones móveis.

E assim, quase sempre à revelia dos humanos, essa máquina infernal está a exibir vídeos barulhentos, discursos idiotas ou narcisistas, áudios reacionários ou religiosos, e notificações, apitos, alarmes, toques e tudo aquilo que consiga chamar a atenção. No mundo moderno, já não se pode viver sem essas máquinas que assassinam o silêncio e são arautos de uma sociedade que acredita no barulho e no grito como forma de persuasão.

Meus Deus! Será que os demônios do século XXI, abrigados nas cavernas do Vale do Silício, não perceberam, como Nietzsche, que o ruído mata o pensamento, ou, como Emerson, que precisamos ser silenciosos para ouvir o sussurro dos deuses? Infelizmente, a máquina de matar o silêncio segue disparando sons cada vez mais altos e, num sinal de que a tragédia está próxima do fim, Hamlet faz uma paródia de sua própria fala: “Só nos resta o barulho”.

Publicado no jornal A Tarde em 23/08/2024

Copyright © 2023 Bahia Economica - Todos os direitos reservados.