Causou estranheza que, ao decidir vir para a Bahia, e adquirir as instalações que foram da Ford, a BYD não houvesse incluído na operação o Terminal Miguel da Oliveira, mais conhecido como Porto da Ford, também de propriedade do Estado da Bahia. Afinal, projetando produzir 250 mil veículos/ano, é essencial que pense em exportação e, naturalmente, que tenha nos seus planos a cabotagem. Fato é que a BYD ficou sem um porto para chamar de seu.
Outrossim, circunstâncias supervenientes, essas de natureza fiscal, levaram a BYD a decidir importar, neste ano de 2024, 100 mil veículos prontos. O Porto de Vitória (ES), por onde atendia ao mercado nacional, era claramente insuficiente para suprir esta demanda, mesmo prejudicando, como está ocorrendo, as suas operações com as exportações de café e rochas ornamentais. Foi assim que vários outros portos brasileiros precisaram ser mobilizados para suprirem, em conjunto, esta demanda extraordinária, a exemplo de Itajaí (SC) e Suape (PE). Outra vez, nada de porto na Bahia.
Estes dois fatos evidenciam que, no Brasil, a BYD ainda não assumiu a sua naturalidade baiana. Por outro lado, com a importação de uma elevada quantidade de veículos em tão curto prazo, deixou explícito que o país não dispõe de instalações portuárias em condições de atender a operações, por assim dizer, em escala chinesa.
Na Bahia, se é certo que existiram, nos últimos anos, investimentos na ampliação da capacidade dos principais terminais portuários da Baía de Todos os Santos (BTS), a verdade é que eles apenas se ajustaram à demanda presente. Nesse caso, a simples chegada da BYD constitui fator suficiente para alterar o atual equilíbrio existente entre oferta e demanda no movimento marítimo, exigindo movimentarem-se as águas desta que é a segunda maior baía do planeta.
É verdade que muito ainda pode ser alcançado com a atual estrutura do BTS-Port, formada por onze instalações portuárias. Parece, no entanto, haver chegado o momento em que se necessita de uma iniciativa disruptiva, que seja, não apenas, capaz de atender à economia local e sua hinterlândia, no patamar atual, mas contemplar a expansão futura das economias estadual e nacional, além de ganhar escala internacional, na perspectiva de transformação da BTS em um hub-port para o Atlântico Sul.
O Atlântico Sul precisará ter um hub-port capaz de atender à nova escala e dinâmica do comércio internacional. É evidente que, por todas as razões, este porto deverá ser no Brasil e, certamente, esse porto não será o de Santos, que tem outras funções a cumprir.
Há circunstâncias em que as condições naturais se impõem à concentração, às forças econômicas preestabelecidas, aos lobbies empresariais ou aos interesses políticos imediatos, exigindo, dos poderes públicos e suas lideranças, uma tomada de decisão que se sobreponha a esses fatores, para fazer prevalecer, em favor do país, a posição mais racional.
Meganavios exigem o atendimento a requisitos operacionais que tornem os portos capazes de recebê-los. Ambientes naturais – como localização geográfica, águas abrigadas e tranquilas, adequadas condições meteorológicas, profundidade natural e baixo nível de assoreamento –, atributos da BTS, podem, em tais condições, ter a preferência, contribuindo para alterar a geografia econômica de um país.
Pode ser o que estamos assistindo agora no Brasil, quando o Porto de Salvador, na Baía de Todos os Santos, Capital da Amazônia Azul, torna-se o primeiro porto nacional a operar com navios do tipo New Panamax, com 366m de comprimento e capacidade de 15.000 TEUs.
Se o Brasil quer crescer, deixar de ser emergente e tornar-se desenvolvido, é preciso que se prepare para satisfazer as condições de competitividade internacional, para atender às necessidades da nova escala e às exigências tecnológicas do comércio exterior, não apenas em relação à movimentação de carros, mas a todos os tipos de cargas. Para isto, é necessário contar com portos multipropósitos.
É neste contexto que surge a oportunidade de termos, no litoral brasileiro, para servir ao Atlântico Sul, um megaporto semelhante ao que a Cosco, empresa chinesa, com sócio local minoritário (60% / 40%), está fazendo em Chancay, no Peru.
E que outro local, no Brasil, apresenta melhores condições naturais e operacionais para projeto deste porte, senão a Baía de Todos os Santos? Situada ao sul do Arco Norte (acima do Paralelo 16° S), a BTS, por sua localização, no centro do litoral brasileiro, apresenta condições de atender a todo o litoral sulamericano e, na hinterlândia, a um grande raio de distância, abrangendo estados do próprio Sudeste, além do Centro-Oeste, do Norte e do Nordeste.
Para atingir esta escala, a BTS precisa de uma novo porto, completo, diversificado, dotado de pátio e retroporto com capacidade para a movimentação de grandes volumes de cargas. Não será um porto apenas para a BYD, mas um porto concentrador de cargas, capaz de cumprir, no Atlântico Sul, o mesmo papel que Chancay, a ser inaugurado já este ano, cumprirá no Pacífico Sul, ambos nas extremidades da futura Ferrovia Transulamericana.
Projetos deste porte só se viabilizam com firme decisão nacional e o envolvimento de acordo de financiamento entre países, como é o caso do acordo entre o Brasil, Peru e China, para os estudos e financiamento da ferrovia que ligará os Oceanos Pacífico e Atlântico. Este mesmo acordo pode ser aditado, para incluir o Porto do Atlântico Sul, na Baía de Todos os Santos. Do ponto de vista chinês, a participação se justifica no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota.
Além de um sócio privado nacional, a participação direta do governo federal no investimento constitui uma demonstração de efetivo interesse, relevante para os chineses, o que poderia ser atendido através da Codeba, a Autoridade Portuária Federal na Bahia, detentora, na BTS, dos portos de Salvador e de Aratu-Candeias, a que se agregaria uma terceira unidade.
Esse novo porto atenderá também à BYD.
Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional. Autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.