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PESSOA E OS ESTUDANTES DE LISBOA – ARMANDO AVENA

Redação - 12/07/2024 11:02

O café A Brasileira no Chiado, perto do Bairro Alto, mais precisamente na Rua Almeida Garret, é um lugar que os brasileiros adoram em Lisboa. É um café literário que faz parte da história da cidade. Como se não bastasse, Fernando Pessoa era frequentador assíduo do local e, em frente ao café, está a estátua do poeta, sentado com uma cadeira vazia ao lado, e é inevitável, ao passar por ali, sentar-se para tirar um selfie com, talvez, o maior poeta da língua portuguesa, ainda que seja imprescindível lembrar que logo ali embaixo está a Praça Luís de Camões.

Mas no Chiado é o modernismo que impera e ali abraça-se Fernando Pessoa, conversa-se com Vicente Guedes, desassossega-se com Bernardo Soares, lê-se “O Guardador de Rebanhos” com Alberto Caeiro, ouve-se uma ode de Ricardo Reis ou declama-se um soneto de Álvaro de Campos: “Meu coração é um almirante louco/que abandonou a profissão do mar”.

Os heterônimos estão todos ali, abrigados no olhar distante do poeta que parece estar mirando o mar de Portugal. Sempre que vou a Lisboa, passo no café para cumprimentar Pessoa e, meio aborrecido por estar preso ao bronze, ele também me cumprimenta. No largo do Chiado, muitas vezes aglomeram-se os estudantes lisboetas e certa vez os encontrei irascíveis, a gritar imprecações contra o meu amado vate.

Crendo que decibéis nas alturas pode dar ênfase às palavras, eles gritavam afirmando que Pessoa era um mau poeta e pouco afeito à gramática:  “O poeta diz: Portugal são! Pobre poeta, é uma besta, não sabe sequer conjugar a última flor do Lácio”, dizia o mais afoito deles. Eram, ao que parece, universitários e não sei se criticavam Pessoa apenas para aborrecer os turistas brasileiros que se amontoavam junto à estátua ou se acreditavam mesmo nas bobagens que diziam. O mais provável, porém, é que, mesmo lendo, não soubessem ler ou, talvez, não soubessem que poetas  podem fazer com a língua o que bem entendem.

Fernando Pessoa jamais disse explicitamente “Portugal são”, mas era assim que pensava, pois para ele Portugal era muitas coisas: era a história de um povo, era o próprio povo, era a língua portuguesa, era o mar. Fernando Pessoa jamais disse explicitamente “Portugal são”, mas poderia dizê-lo porque a poesia é maior do que a concordância. O poeta tudo pode, até humanizar Portugal e colocar lágrimas em seus olhos: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! ”.  Pode transformá-lo em alguém em busca de sua utopia e orar ao Senhor por ele: “Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. /Senhor, falta cumprir-se Portugal!”.

Os jovens que questionavam Pessoa tinham a alma pequena, nada sabiam do poeta, não sabiam nada de Portugal. Não serão capazes de cruzar o Bojador. “Quem quer passar além do Bojador/Tem de passar além da dor”.

 

Publicado no jornal A Tarde em 12/07/2024

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