A atuação do Poder Judiciário – representando a figura do Estado-Juiz – sempre esteve baseada na enunciação de sentenças como meio de estabelecer uma espécie de “segurança centralizadora” na resolução de conflitos. Seja por questões ontológicas, teleológicas e também de estrutura, o modelo clássico de intervenção judiciária se revelou incapaz de absorver todo o plexo de disputas gestadas das relações interpessoais, deixando de entregar soluções compatíveis com os ideais de justiça, eficiência (resultado x tempo) e efetividade na tutela dos direitos e interesses envolvidos nas disputas.
Foi a partir dessa crítica que, no ano de 1976, o professor e reitor da faculdade de Direito de Harvard, Frank Sander, formulou originalmente o conceito de sistema de “Justiça Multiportas”, cuja definição tem por base metafórica a ideia de que a Justiça não tem por acesso apenas a “porta” do Poder Judiciário, mas diversas outras “portas”, cada uma delas potencialmente representativa do melhor e mais adequado meio de solução para um dado conflito.
Conquanto a primeira referência ao conceito pareça remota, a afirmação do novo paradigma de uma “Justiça Multiportas” é algo relativamente novo no Brasil, que ganhou força a partir do advento do novo Código de Processo Civil e de outras inovações legais – a exemplo da Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e do art. 151 da Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) – e da sua crescente utilização pela comunidade jurídica, que avança rumo àuma mentalidade multiportas.
Atualmente, há no contexto brasileiro uma série de instrumentos à disposição dos profissionais da área jurídica, uns mais difundidos, e, portanto, com maior repertório de entendimento/compreensão consolidada em seu derredor – como ocorre com as medidas extrajudiciais de divórcio, inventário (Lei nº 11.441/2007), adjudicação compulsória (Lei nº 14.382/2022), e também com aconciliação (Lei nº 13.105/2015), mediação (Lei nº 13.140/2015) e arbitragem –, e outros menos conhecidos, mas de grande importância social e econômica, sobretudo em relações complexas e de trato continuado, como é o caso dos Dispute Boards.
A idealização do “Dispute Resolution Board” (DRB), ou “Comitê de Resolução de Controvérsias”, remonta ao final da década de 1960, quando no projeto de construção da hidrelétrica de Boundary Dam, no estado de Washington, nos EUA, as partes contratantes solicitaram que o joint consulting board permanecesse ativo e emitisse pareceres em relação a eventuais conflitos contratuais. Outros artigos indicam que a publicação de um relatório pelo US National Committee sobre tecnologia na perfuração de túneis tenha destacado a adoção dos Dispute Boards nos projetos de construção do Túnel Eisenhower no ano de 1975 e contribuído para a difusão da prática.
Fato é que, desde àquela época – décadas de 60 e 70–, constatou-se que a litigiosidade em contratos deconstrução, cuja comutatividade está baseada em relação de trato continuado de pagamento e execução da obra, trazia um custo operacional enorme, sobretudo em razão do risco de descontinuidade, com impactos que se alastravam para além das partes no contrato.
No Brasil, apesar de o art. 151, da Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) estipular a possibilidade de instalação do “comitê de resolução de disputas” nos contratos por ela regidos, o uso efetivo da ferramenta ainda é tímido e tem como paradigma a construção da linha 4 do metrô de SP e o BRT de Belém, exemplos de contratos públicos, complexos e de trato continuado nos quais foi utilizada a cláusula com previsão da instalação do Comitê de Resolução de Controvérsias.
É de se ver, portanto, que a constituição de um Comitê de experts para acompanhamento do cumprimento do contrato, baseada em ajuste contratual das partes,aplica-se, em regra, à execução de projetos de grande envergadura e complexidade, como ocorre com osinvestimentos em infraestrutura, os quais são comuns no âmbito dos contratos de concessão.
Diferentemente da mediação, conciliação ouarbitragem – nas quais a controvérsia é necessariamente anterior à sua deflagração–, o Comitê é constituído com a perspectiva de que controvérsias, notadamente as de caráter técnico, tem razoável probabilidade de ocorrer, devendo ser geridas por pessoas com conhecimento técnico e jurídico, que terão a incumbência de emitir Recomendações e Decisões vinculantes às partes, a fim de evitar, ou ao menos atenuar, o risco de uma disputa –arbitral ou judicial – cujo caminho para desvelamento dos fatos está, em regra, condicionado, a um longo, complexoe tortuoso procedimento de produção de prova pericial.
Evidentemente, os contratos de concessão, sobremaneira os que envolvem ampliação, melhoramentos e manutenção de ativos públicos, como ocorre com o setor aeroportuário, rodoviário e de saneamento básico, estão associados, em regra, à realização de grandes investimentos para consecução de obras de infraestrutura, as quais não podem sofrer com o risco de descontinuidadeem razão de impasses ou litígios instaurados entre as partes.
Deste modo, para salvaguardar a continuidade dos contratos de concessão, trazendo maior previsibilidade e segurança jurídica, com impactos que – a priori – também são positivos à governança corporativa privada, dada à gestão pari passu das “questões” contratuais, que devem ser tempestiva e devidamente documentadas, o Dispute Board, ao menos em tese e a partir da experiência até então registrada, revela-se um importante aliado como solução alternativa e adequada de conflitos.
Não por outra razão, está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2421/2021, de autoria do ex-Senador Federal Antônio Anastasia, do PSDB/MG, que visa “regulamentar a instalação de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas em contratos celebrados pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios”.
Em auxílio às discussões que estão sendo travadasno legislativo em razão do aludido Projeto de Lei, oCentro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas – FGV, sob a coordenação do Ministro Luis Felipe Salomão, analisou o universo de 54 decisões que se referem ao Dispute Board em contratos de infraestrutura, proferidas pelo TCU, TJSP e STJ, e concluiu que recomendações e decisões dosComitês costumam ser mantidas, pois “em nenhum dos casos o Poder Judiciário reformou a decisão do board”.
Posto este panorama é de se esperar a estipulação crescente de Dispute Boards em contratos de concessão einfraestrutura, eis que (i) reforçam a finalidade precípua do contrato, que é o seu cumprimento; (ii) estimulam o diálogo entre as partes na solução dos impasses surgidos ao longo do contrato; (ii) fomentam a conclusão mais célere do projeto de infraestrutura, o que justifica o custo da sua contratação; (iii) têm a capacidade de atenuar os“estouros de custo” em razão de impasses não solucionados ao longo do contrato; (iv) possibilitam a prevenção da maioria das disputas arbitrais e judiciais e, (v) na hipótese de uma disputa arbitral ou judicial se mostrar inevitável, o objeto de análise pelos julgadores certamente contará com uma arcabouço documental e de informações que possibilitará um julgamento mais fiel dos fatos.
* Alexandre Cunha de Andrade é advogado, sócio do Fraga & Trigo Advogados, atuante na área de Concessões e Infraestrutura.