A imagem da santa, que dizem ter sido esculpida por Aleijadinho, está no saveiro “Viajante sem Porto” atravessando a Baía de Todos os Santos e parece extasiada com tanta beleza. É Santa Bárbara e veio da igreja matriz de Santo Amaro da Purificação para uma exposição de arte religiosa no Museu de Arte Sacra. Mas, antes que mestre Manuel e Maria Clara terminassem a amarração do saveiro, para então levar a imagem ao seu destino, “a santa saiu do andor, deu um passo adiante, ajeitou as pregas do manto e se mandou.” Eparrei Oyá!”, disse ela com um sorriso afetuoso e cúmplice. Tornou-se Iansã e sumiu no meio do povo. E Santa Bárbara, a do trovão, subiu a Rampa do Mercado, em frente ao Elevador Lacerda, andando com pressa, pois era a hora do padê, em que se faziam oferendas a Exu.
Não estava muito interessada na exposição do Museu de Arte Sacra, veio porque precisava libertar Manela, a linda jovem a quem ajudou a lavar as escadarias da igreja numa quinta-feira do Bonfim. Manela fora internada no “Convento das Arrependidas” e precisava libertar-se do convento e da tia Adalgisa, beata católica que não admitia o sincretismo religioso que há na cidade da Bahia e tampouco que a sobrinha tenha escolhido o candomblé como sua religião e um namorado negro, de nome Miro. Iansã tinha um desiderato, mas tinha também o gosto de ver a beleza da cidade da Bahia, por isso o seu sumiço.
Pois é, no romance O Sumiço da Santa, de Jorge Amado, Santa Bárbara vem à Salvador, transforma-se em Iansã e vai passear pelos recantos da cidade. Não me peça explicações, leitor, “uma história se conta, não se explica”, diz Jorge Amado. E diz também que “nas terras da Bahia, santos e encantados abusam dos milagres e da feitiçaria, e etnólogos marxistas não se espantam ao ver imagem de altar católico virar mulata faceira na hora do entardecer”.
Então, que dizer do Senhor do Bonfim. Ele, que tudo vê, assiste do interior da igreja ou na janela como querem agora, a belíssima Lavagem do Bonfim. E vê milhares de pessoas aos Seus pés na Colina Sagrada homenageando-O. E encanta-Se com as baianas, todas com a quartinha na cabeça lavando o adro da Sua Igreja com água perfumada com cheiro de arruda e alfazema. Que beleza essa festa, única no mundo, onde deuses de toda a parte são cultuados em uma mesma cerimônia. Que beleza ver nessa Roma negra as religiões se abraçarem para louvá-Lo, não importa em que forma Ele esteja representado. Que maravilha ver a Colina Sagrada coberta pelo manto branco da paz. E que força tem tanta gente unida na crença sem dar muita importância as religiões criadas pelo homem. Só na cidade da Bahia isso é possível, por isso não se assuste, leitor, se, encantado com essa cidade mágica, o Senhor do Bonfim descer do altar e, transformando-Se em Oxalá, for para fora da Igreja confraternizar com o povo que o ama.
Publicado no jornal A Tarde em 12/o1/2024
Foto: Walmir Cirne/Ag.Haack