O livro “Biografia do Abismo”, do jornalista Thomas Traumann e do cientista social Felipe Nunes, da empresa de pesquisas Quaest, levanta uma tese discutível e, ao que parece equivocada, sobre a política brasileira. Segundo ele, não existe mais o Brasil, existe apenas o “Lulanaro”, colocando de um lado os adeptos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outro do ex-presidente Jair Bolsonaro. E, segundo os autores, isso ultrapassou a política e passou a significar escolhas diferentes de estética, educação, consumo, lazer e até sentimentais e familiares.
A tese está baseada em pesquisas eleitorais e, por isso, tem pouca sustentação já que estes instrumentos, que são importantes, refletem apenas a fotografia do momento. O que está acontecendo com Bolsonaro, já aconteceu com Fernando Collor de Mello e com Jânio Quadros. Esses homens, populistas de direita, tem o condão de despertar a direita brasileira, que representa grande parte da população, mas, como sua ação se insere no descompromisso com as instituições e, portanto, com a política, eles tendem a ficar relegados a escaninhos eleitorais logo que perdem o poder. Jânio tentou dar um golpe de Estado com sua renúncia, Collor tentou desmerecer o Congresso Nacional e desmoralizar a política com seu estilo bonapartista e Bolsonaro pregou abertamente o golpe de Estado e a quebra das instituições, inclusive com o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Todos eles foram relegados ao lixo da história, embora mantivessem, e mantenha no caso de Bolsonaro, uma tropa fiel que podia elegê-los senadores ou até prefeito, no caso de Jânio, mas que não são mais capazes de tornar-se alternativa de poder.
O grande feito de Bolsonaro, como de todos os outros, foi colocar a direita nas ruas, mas essa direita já percebeu que não será com populistas histriônicos que irá levar suas ideias ao Palácio do Planalto. A direita no Brasil está cada vez mais viva, mas trabalha com outros universos – Tarcísio de Freitas, Zema ou quem sabe um novo outsider –, e mantém viva a figura de Bolsonaro apenas para não desagregar o que ele conseguiu juntar.
Assim, o primeiro erro nas conclusões da dupla de autores é a personalização da disputa entre esquerda e direita nas figuras de Lula e Bolsonaro. Diferente do que dizem os autores, a importância de Bolsonaro na política brasileira está em queda livre, restrito a uma parcela da população e a grupos que manipulam as redes sociais buscando adversários, como Flávio Dino, para ver se mantém a chama do bolsonarismo acesa. O que não está em queda livre é a disputa entre esquerda e direita e ela vai voltar em 2026.
Dizer que o Brasil está preso ao Lulanaro é fazer a análise como se a eleição tivesse terminado hoje, sem levar em conta o estrago feito na figura de Bolsonaro, com comprovação da tentativa de golpe de Estado, dos presentes caríssimos que ele tentou vender e de todas as falcatruas que estão aparecendo. Bolsonaro é carta fora do baralho. Mas a hipótese Lulanaro é datada, até porque, além de Bolsonaro fora da disputa, Lula já está beirando os 80 anos e não parece preocupado em preparar uma alternativa de poder.
Mas e a pauta de costumes? E a política gerando conflitos familiares? Em relação a pauta de costumes, a opinião pública brasileira varia de acordo com as marés, sempre mantendo dois campos nos extremos, mas a maioria silenciosa se posiciona de acordo com os fatos do dia a dia. E a maré sobe e desce. E a briga no âmbito familiar existe desde que Deus criou as famílias e o conflito pode ser religioso, político, futebolístico ou sobre o vizinho da esquina.
É hora de olhar a história e ver que a disputa entre esquerda e direita, independente de nomes, está viva como nunca. Que Lulanaro, que nada! O Brasil continua, como ocorre desde os anos 30, no âmbito da disputa entre esquerda e direita. (EP – 04/12/ 2023).
Foto: Evaristo Sa/AFP/Marcos Corrêa/PR/Reprodução