As distribuidoras de energia elétrica devem perder 5.301 clientes, ou 1% do seu mercado, com a migração de consumidores ligados em alta tensão – como comércios e indústrias – para o mercado livre de energia. Os dados são da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que estima para 2024 a migração de clientes que consomem um total de 279,4 gigawatts-hora (GWh) de energia por mês.Esse consumo representa 1% da energia demandada mensalmente pelos consumidores no chamado mercado “cativo” ou “regulado” – que só pode comprar energia da distribuidora local.Os dados consideram a média de consumo nesse mercado até julho de 2023, segundo cálculo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
O que muda a partir de 2024?
A partir de janeiro de 2024, os consumidores de energia em alta tensão poderão comprar energia de qualquer comercializador que não seja a distribuidora, negociando preços. O mercado livre existe no Brasil desde 1996, mas as regras para migração restringiam a contratação para grandes consumidores, com demanda acima 1.000 quilowatts (kW) ou 500 kW, no caso de fontes renováveis.
Em setembro de 2022, o governo federal publicou uma portaria que permite a migração de todos os outros consumidores ligados em alta tensão. Já os consumidores em baixa tensão, como os residenciais e rurais, permanecem tendo de comprar energia da distribuidora local.
“A portaria torna elegível esses consumidores a partir de janeiro [de 2024], mas o efeito prático já é concreto porque 5.300 contratos já foram encerrados com as distribuidoras, [elas] já foram notificadas, e 5.300 novos contratos já foram assinados com os comercializadores”, declarou o presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Rodrigo Ferreira. No ano passado, o governo chegou a colocar em consulta pública uma portaria para a abertura completa do mercado, mas ela nunca foi publicada. O tema também é tratado em um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados.
A conta de luz vai aumentar?
Os custos de aquisição de energia são menores no mercado livre. Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que a tarifa pode cair de 15% a 20% para quem migrar a partir de 2024. Mas, para os consumidores que vão continuar no mercado cativo, das residências, a conta de luz pode aumentar. É o que afirma o presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Marcos Madureira.
Ele lista três razões para um eventual aumento:
“Sem dúvida, esses três impactos serão sentidos. Não é igual porque vai depender de como cada distribuidora será impactada. Uma distribuidora poderá ter um volume maior de migração, outra poderá ter um volume menor, mas sem dúvida alguma a tarifa dos consumidores no mercado regulado será impactada”, afirma Madureira.
O aumento na CDE se dará por causa de uma eventual alta no consumo de fontes incentivadas no mercado livre. Usinas de geração solar e eólica, por exemplo, têm descontos nas tarifas de uso dos sistemas de distribuição e transmissão, que são custeados pela CDE.Já a sobrecontratação das distribuidoras é uma questão sistêmica. Hoje, esse número está em torno de 10%, segundo o presidente da Abradee. Isso significa que essa parcela de energia contratada não é consumida no mercado regulado, por falta de demanda.
Quando a energia “sobra”, as distribuidoras podem:
Segundo Madureira, as distribuidoras pagam em média R$ 250 por megawatt-hora (MWh) pela energia. O valor é superior ao Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) — referência para o mercado livre, que hoje está no piso, a cerca de R$ 70 por MWh. O PLD é o valor pelo qual a distribuidora vende energia no mercado livre. Com isso, a diferença de R$ 180 por MWh acaba na conta do consumidor cativo – que não tem acesso ao mercado livre.
“É o que chamamos de espiral da morte. Toda vez que alguém migra do mercado regulado para o mercado livre, como as regras estão hoje, aumenta o preço do mercado regulado. Portanto, torna mais atrativo para alguém migrar. Esse alguém migra, torna mais atrativo [para outro]. E a energia vai ficando mais cara para quem permanece no mercado regulado”, declarou Madureira.
A Abraceel, que representa as comercializadoras do mercado livre, afirma que não verifica esse impacto na conta de luz.Segundo Ferreira, haveria uma redução na CDE com uma eventual migração de consumidores da geração distribuída –terceiro subsídio com mais impacto no fundo setorial. Na geração distribuída, o consumidor gera sua própria energia, principalmente a partir de placas solares.
Contudo, o presidente da Abraceel reconhece que essa migração demanda mais convencimento, porque já houve um investimento em geração por parte do cliente em potencial.Ferreira afirma ainda que a associação não encontrou indícios de sobrecontratação com a migração desse grupo de consumidores – o chamado “grupo A”, de alta tensão. “Há um volume significativo de energia que deixará o mercado regulado nos próximos anos, muito superior ao volume de energia envolvido nessa fase de abertura do mercado”, disse.
Como migrar para o mercado livre?
Pela regulação atual, todos os consumidores em alta tensão — acima de 2,3 quilovolts (kV) – poderão contratar energia no mercado livre a partir de janeiro de 2024. Isso significa que vão poder adquirir energia de um comercializador a preços negociados.As regras excluem os consumidores em baixa tensão, como residências e em áreas rurais, que vão permanecer comprando da distribuidora local.
Para iniciar o processo, o consumidor precisa notificar a sua distribuidora 6 meses antes do vencimento do contratual anual de prestação de serviços.Além disso, a partir de janeiro, os consumidores aptos a migrar terão que fazer isso por meio de uma comercializadora varejista. Ou seja, uma empresa que os representará junto à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) — responsável pela gestão da compra e venda de energia no mercado livre.
“Isso facilita demais a vida deles, porque não só o modelo de comercializador varejista simplifica muito a vida para o consumidor, como agiliza uma série de elementos dessa migração”, afirmou o presidente da Abraceel.
Expectativas do setor
Com a publicação da portaria, em setembro de 2022, o mercado passou a se preparar para entrada de milhares de consumidores que possuem consumo individual menor. “Essa abertura é algo para o qual nós nos preparamos há três anos. Entendemos que é uma disrupção superimportante no mercado de energia”, afirma o diretor de Tecnologia da Delta Energia, Alfredo Silva. Em julho, o grupo comprou a Wisebyte, uma empresa de tecnologia voltada para o mercado livre.
Segundo Silva, atualmente, o mercado potencial de consumidores livres é de 30.000 empresas. Com a abertura para a alta tensão, esse número vai para 72.000. E, caso os consumidores residenciais sejam incluídos futuramente, o mercado pode crescer para mais de 80 milhões. Os números da Aneel para migração em 2024 superaram as expectativas. Segundo os dados da agência, só em janeiro, 2.195 consumidores devem entrar no mercado livre.
Como as distribuidoras têm que ser notificadas seis meses antes do término dos contratos e os dados da Aneel são de junho, esse número de migração em janeiro está fechado. Contudo, nos meses seguintes, pode aumentar. “Estávamos imaginando, depois de algumas conversas com Aneel, CCEE etc., 1.500 em janeiro e me parece que são [mais de] 2.000. É um número bem expressivo”, afirma Ferreira.
A CCEE estima um mercado potencial de 165.000 consumidores, sendo que 93.000 já fizeram investimentos em geração distribuída –em que o próprio consumidor gera sua energia. O restante, cerca de 72.000 clientes, estaria mais propenso a migrar. “É um mercado ainda de ‘atacarejo’. Antes da portaria, o que tínhamos era um mercado de atacado. Grosso modo, para fazer parte do mercado livre, um consumidor tinha que ter uma conta mensal na ordem de R$ 150 mil […]. Com a portaria, passam a ser elegíveis consumidores com uma conta de R$ 10 mil. É muito diferente”, disse o presidente da Abraceel.
Segundo o presidente da Abradee, Marcos Madureira, o mercado livre é um fato, mas seria necessário endereçar os custos que ficam para o mercado regulado. “A abertura de mercado é algo previsto para ser institucionalizado, faz parte da evolução [do mercado]. Nós só entendemos que tem que se tomar alguns cuidados para os incentivos que são dados nos mercados não continuarem onerando os consumidores regulados”, declarou.
Foto: Paulo Santos/Reuters