MILAN KUNDERA
Na segunda parte de Henrique IV, William Shakespeare coloca na boca do recruta Feeble uma sentença que acompanha a humanidade desde sempre: “ Um homem não pode morrer mais do que uma vez. Devemos uma morte a Deus “. Mas eu acreditei que, ao menos desta vez, Ele iria perdoar a dívida, afinal, Milan Kundera já havia completado 94 anos. Mas, em relação a morte, Deus assemelha-se a outro personagem de Shakespeare, Shylock, um agiota que empresta dinheiro ao mercador Antônio, avisando que, se ele não devolvesse o dinheiro no tempo certo, teria de ceder em troca uma libra de carne do seu próprio corpo. A querela vai aos tribunais, pois Antônio não paga a dívida e Shylock exige o pedaço de corpo a que tem direito. Pois é, Deus também jamais esquece de cobrar a carne a que tem direito e, nesta semana, veio buscar Milan Kundera.
Nascido na antiga Tchecoslováquia, Kundera, filiado ao Partido Comunista, ficou famoso por ter defendido a Primavera de Praga e depois, quando as tropas do Pacto de Varsóvia, comandados pela União Soviética, invadiram o país e cassaram todos os direitos e liberdades conquistados, ele tornou-se dissidente do regime de Stálin e ridicularizou o ditador em vários livros, tendo sua cidadania revogada e sendo obrigado a exilar-se na França. Mas não foi a política que me fez gostar de Kundera, o que me aproximou dele foi sua forma de escrever, abordando temas profundos da natureza humana de forma leve. Ele mesmo, se definiu, em uma entrevista da Paris Review: “ A ambição de minha vida tem sido unir a máxima seriedade da indagação com a máxima leveza da forma”.
Kundera ficou famoso ao publicar seu livro “A Insustentável Leveza do Ser”, cuja primeira parte, “A leveza e o peso” é um contraponto entre a leveza do filósofo Parmênides, do século Vi antes de Cristo, e o peso de Nietzsche e, manejando levemente esses filósofos, ele diz coisas como essa: “Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores”. Os romances de Kundera talvez não estejam entre os clássicos contemporâneos, mas ele é um mestre em misturar situações, como em seu livro, “A imortalidade”, no qual mistura a história de Agnes com o caso de amor entre Gothe e Bettina von Arnim e cria um personagem interessantíssimo, o professor Avenarius, e o leitor obviamente já percebeu porque gosto desse romance, apesar de, por momentos, ele assemelhar-se a uma colagem solta.
E no meio disso tudo, Kundera ainda divaga sobre a imortalidade lembrando a grande imortalidade, a recordação de um homem no espírito daqueles que não o conheceram, e a pequena imortalidade, a recordação de um homem no espírito daqueles que o conheceram. Milan Kundera alcançou a grande imortalidade.
Publicado no jornal A Tarde em 14/07/2023