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EU, LUIZA MAHIN – ARMANDO AVENA

Redação - 27/01/2023 08:54 - Atualizado 27/01/2023

Faz dois dias que tomamos de assalto a cidade da Bahia.

Saímos de madrugada vestidos com abadás brancos e torsos na cabeça e fomos aos poucos tomando as ruas da cidade. De repente, éramos quase mil e eu, mulher e preta, tive a honra de estar à frente daqueles que iam em busca de liberdade. Os brancos deram-me o nome de Luiza. Eles, os senhores de engenho, queriam-me escrava, mas não se pode escravizar quem tem a liberdade no peito.

Os homens, brancos e negros, queriam-me submissa, mas não se pode submeter quem traz a altivez na mente. Outros, queriam-me atada a um só deus, mas não se pode aprisionar a uma única fé quem traz todas no coração.  Por isso revoltei-me e, ainda criança, após ser tirada de minha casa, no reino de Daomé, na Costa da Mina, e jogada num negreiro, lutei desesperadamente por minha liberdade. E tornei-me uma mulher livre, alfabetizada e liberta, que amava os homens  que desejava, fossem eles negros ou brancos. Para não ser submissa aos homens, desde cedo lancei-me ao trabalho e, além de exímia quituteira, tornei-me dona de quitanda e os homens que ali comiam podiam até estar apaixonados por mim ou pelo meu corpo, mas o que os movia era o maravilhoso arroz de hauçá, um prato ecumênico, ainda que origem muçulmana.

Para não ser submissa a uma única crença, rezei por todas elas e vi que, embora manipuladas pelos que queriam a guerra, na essência elas pregavam a paz e a conciliação. E, ainda que em meu peito Oxalá tivesse a precedência, fiz-me de elo de ligação entre as religiões, fazendo ver ao meu povo que todas elas deviam se unir quando o objetivo  fosse pôr fim à escravidão. E assim, entre os homens e mulheres que tomaram a cidade da Bahia por um dia havia  nagôs, jejes,  ketus e haussás,  chamados de malês, que eram mulçumanos como meu amado Ahuna e lideraram a revolta. E eu, Luiza, fui o elo de ligação entre todas as etnias. Por isso, tenho orgulho ter estado entre os líderes da rebelião que tomou a cidade da Bahia dois dias atrás, em 25 de janeiro, pois, mesmo dizimados na batalha de Água de Meninos, já que eles eram muitos e possuíam cavalos e armas-de-fogo, o povo preto da Bahia demonstrou que era capaz de se organizar, de planejar e estruturar uma revolta, montar um banco que a financiou e tomar a cidade, que provavelmente seria mais justa e menos desigual se nós tivéssemos vencido.

Na verdade, nossa honra venceu, pois lutamos com dignidade e, mesmo com acesso às casas dos senhores de engenho, não atacamos homens, mulheres e crianças brancas, mas apenas o aparato militar que nos escravizava. Atacamos fortes e quartéis e não casas de família, pois não queríamos vingança, queríamos liberdade.

Dois dias atrás aconteceu a maior revolta urbana de negros do Brasil e vim aqui para lembrar a vocês que hoje moram na cidade da Bahia a minha história, a história do meu povo.  Para isso deixei o Orum e encarnei neste escriba, autor do livro “ Luiza Mahin” que conta minha história, não exatamente como ela se passou, afinal os escritores se dão ao luxo de exercer a licença poética, mas como eu gostaria que se tivesse passado.

Publicado no Jornal A Tarde em 27/01/2023

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