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O IGNORANTE ILUSTRADO – POR ARMANDO AVENA

Redação - 14/10/2022 08:41 - Atualizado 14/10/2022

Não tenho lá muita paciência para aprender línguas e de vez em quando invade-me uma certa inveja do sujeito que aprende dois, três idiomas com a maior facilidade.

Por isso, adoro a crônica de Nelson Rodrigues, “Uma banana como merenda”,  em que ele fala de um amigo, dele e de Hélio Pellegrino, que foi tomado por “fulminante erudição”. Nelson diz que o cidadão aprendeu do dia para a noite não sabe quantos idiomas.  “Já não digo francês, que todos falam, menos eu. Não. O rapaz declamava Goethe em puríssimo alemão”, diz um acabrunhado Nelson Rodrigues, para então contar que chegou mesmo a  surpreendê-lo recitando o padre-nosso em grego. Irritado, explode o cronista:  “Como sabe! Como lê! Como cita!”, até afirmar que tudo era falso,  que “aquilo era uma catedral de pauzinhos de fósforos, sim, um gótico de palitos”, diz no auge da inveja.

É então que Nelson se supera e conta que certa manhã escreveu uma carta  anônima, em que aconselhava o erudito: “Leia pouco, pelo amor de Deus, leia pouco!”.  E num tom que ele qualifica de  “salubérrimo descaro”  aconselha-o  a voltar a ler Dumas pai,  Ponson Du Terrail,  Michel Zevaco, Eugène Sue e outros folhetinistas de boa cepa. Mas, então, reconhece o sarcasmo com que trata o poliglota e admite que pensa realmente assim: “Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito”. Depois, o cronista envereda por outros caminhos, mas a figura do pseudo erudito  é perfeita e muitas semelhantes a ela eu mesmo encontrei pelo mundo afora.

Certa vez, por exemplo, em minha andanças pelo interior da Bahia, conheci um cidadão de nome Renê que exalava erudição e parecia ter somente duas paixões na vida: a cachaça, cujo primeiro gole ele bebia antes mesmo do café da manhã e  seguia esse rito, junto com o cafezinho, de hora em hora ao longo do dia; e a literatura, pois entre um gole e outro, declamava poemas, desfiava citações e até passagens inteiras de romances conhecidos. E de tal modo a coisa se passava que bem cedo, no salão de refeições da pensão, os hóspedes eram surpreendidos, enquanto tomavam seu café da manhã, por uma voz empostada, a declamar em ritmo pausado:

“As armas e os barões assinalados/ Que da ocidental praia lusitana/Por mares nunca de antes navegados/Passaram ainda além da Taprobana, /Em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo reino, que tanto sublimaram;”

Pois é, ele declamava Camões após o primeiro trago do dia e depois vinha Castro Alves e Cecília Meirelles, tudo isso intercalado com frases feitas que ele repetia como se fosse um bordão, sempre citando o autor.

“Como sabe! Como lê! Como cita!”, pensei ao ouvi-lo pela primeira vez. Mas logo descobri que ele era como o personagem de Nelson Rodrigues, uma catedral de pauzinhos de fósforos. Ele havia decorado suas falas e simplesmente as repetia, sem sequer saber o que significavam. Renê era um ignorante ilustrado. 

Publicaram no jornal A Tarde em 14/10/2022

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