Em um governo com divergências internas, que coloca em lados opostos a equipe econômica e as alas política e militar, quando o assunto é o tamanho do gasto público, 2021 promete ser um ano de disputa pelos limitados recursos do Tesouro. Com um Orçamento de cerca de R$ 1,5 trilhão, o governo terá liberdade para manejar menos de R$ 100 bilhões. São os chamados gastos discricionários, que incluem investimentos e despesas para a manutenção da máquina pública.
O restante são verbas carimbadas, como os recursos voltados aos pagamentos de salários de servidores públicos e benefícios previdenciários. O Brasil não gera superávit fiscal desde 2014, o que significa que o governo vem gastando mais do que arrecada (já desconsiderando a despesa com os juros da dívida pública). O buraco nas contas vai atingir um patamar sem precedentes em 2020 devido à pandemia. Só com medidas emergenciais para o combate à crise sanitária, o gasto ficou em torno de R$ 600 bilhões, o que deve levar o resultado primário do ano a um déficit de R$ 844 bilhões, segundo a estimativa oficial.
E os rombos continuam. Para 2021, o governo estabeleceu uma meta de déficit de R$ 247,1 bilhões para as contas do governo federal. Se confirmado, esse valor será o segundo pior já registrado pelo Tesouro, perdendo apenas para o atípico ano de 2020. A forte expansão de gastos para mitigar os efeitos da pandemia levou a uma disparada no endividamento público, antes já elevado e acima do de países como a Alemanha. A dívida bruta do governo, que encerrou 2019 em 74,3% do PIB, deve fechar 2020 em 91% do PIB, segundo estimativa oficial.
A dívida do governo passou de R$ 4,5 trilhões em 2020, com prazos mais curtos de pagamento e juros maiores, e a tendência é continuar subindo pelo menos até 2030, se o governo não adotar medidas de restrição de gastos, ampliação da arrecadação ou ações extraordinárias, como a privatização de estatais e venda de outros ativos. Ainda sem controle da pandemia e sem vacinas disponíveis para os brasileiros, a virada de 2020 para 2021 traz de volta as regras fiscais, suspensas no período de calamidade pública (encerrado no dia 31).
Com isso, o governo terá de respeitar novamente a meta para o resultado primário e o limite imposto pelo teto de gastos, regra que impede que as despesas públicas cresçam mais do que a inflação. Embora membros da equipe econômica afirmem que o governo conseguirá passar por 2021 sem descumprir a norma, especialistas apontam que há risco de rompimento do teto. Por isso, o Ministério da Economia quer a retomada da agenda de mudanças estruturantes e medidas de ajuste fiscal, como a reforma administrativa (que diminui gastos com servidores), a reforma tributária (que simplificaria normas e aumentaria a competitividade) e a proposta do pacto federativo (que revê despesas).
Mas o ministro Paulo Guedes (Economia) não obtém consenso para as medidas nem mesmo entre os colegas de governo. Membros das alas política e militar defendem uma maior liberdade para ampliar despesas em obras públicas sob o argumento de que isso poderia estimular a atividade econômica. Também há pressão entre especialistas e parlamentares para que o governo amplie gastos com saúde para combater a pandemia e reforce programas de assistência social para amparar pessoas que ficaram sem emprego e perderam renda na crise sanitária. Na visão dos analistas, o ajuste fica ainda mais comprometido sem o presidente Jair Bolsonaro liderar a discussão pelas mudanças. A Folha ouviu a opinião de diferentes economistas sobre os cenários para 2021 e o futuro da agenda econômica.
As sociedades colapsam quando quem está próximo ao poder toma decisões boas para si, mas ruins para a população em geral. Essa é uma das teses do biólogo evolucionário Jared Diamond, que integra o rol de ganhadores do Prêmio Pulitzer. O autor, que também aponta como causas da ruína fatores como o esgotamento de recursos naturais —muitas vezes sem que as populações notem o problema ou criem medidas para solucioná-lo—, é citado em análise sobre o problema das contas públicas brasileiras feita pelo economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central. “Acho que se aplica ao nosso caso”, afirma. “O mais triste é identificar o problema, saber como resolver, mas não conseguir gerar o consenso político para solucionar”, diz.
Schwartsman cita Diamond para ilustrar sua visão de que os agentes políticos do país e seus grupos mais próximos têm tomado decisões que privilegiam a si mesmos enquanto travam o andamento de uma série de reformas cruciais para solucionar os problemas fiscais e da atividade econômica. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa visão aconteceu em 15 de setembro do ano passado, quando o presidente Jair Bolsonaro divulgou vídeo em redes sociais, repetido amplamente nos telejornais, vetando a mera discussão de revisões de gastos sociais. Bolsonaro afirmou que não retiraria recursos dos pobres para dar aos paupérrimos e ainda disse que não se deveria falar mais durante seu mandato sobre o Renda Brasil (programa social que teria abrangência maior que o Bolsa Família e dependia de cortes em outras áreas).
A fala jogou um balde de água fria na equipe econômica, que considera ineficientes programas como o abono salarial (espécie de 14º salário de até R$ 1.045 aos trabalhadores formais que recebem até dois mínimos mensais). A visão da equipe era que redirecionar tais recursos aos mais vulneráveis, por meio de iniciativas similares ao Bolsa Família, seria mais eficiente para reduzir a desigualdade. Mas, diante do risco de as mudanças soarem impopulares, Bolsonaro vetou as discussões e acabou travando conversas sobre as mudanças. Outras sugestões, como a revisão de subsídios e de gastos tributários, também não foram adiante. “A preocupação do presidente é basicamente com o projeto político dele. E de como ele pode estar sendo operado, dado que não tem capacidade para entender uma série de coisas que estão acontecendo”, afirma o economista.
Schwartsman vê falta de liderança para discussões e a equipe econômica dando voltas em si mesma. Para ele, o cenário deve fazer com que nenhuma reforma relevante avance até 2022. “Podemos debitar isso na falta de preparo do presidente da República. Mas não é nenhuma surpresa, a gente sempre soube disso. Um deputado absolutamente apagado por 30 anos, com limitações muito claras no que diz respeito à economia”, afirma. Apesar das críticas ao presidente, o ex-diretor do BC também vê culpa em outros atores pela falta de andamento de certas discussões, como o Congresso e servidores públicos contrários a mudanças que os afetem.
Nesse caso, o principal exemplo citado é o da reforma administrativa, enviada pelo governo aos parlamentares sem afetar os atuais servidores e, portanto, com efeito praticamente nulo a curto e médio prazo. “A sociedade brasileira não está preparada para abrir mão de seus privilégios. Os grupos que estão próximos ao centro de poder não querem, e o funcionalismo, que não teve redução de jornada e salário na pandemia, tem articulação política para isso”, afirma Schwartsman. A reforma reduziria os recursos destinados aos empregados públicos, mas não é discutida de maneira mais ampla diante de pressões dos servidores sobre o governo e o Congresso.
A despesa com pessoal é o segundo maior gasto primário da União (exceto juros), atrás apenas da Previdência, e demandará R$ 338,4 bilhões em 2021. Isso contempla desde professores de escolas públicas até juízes federais que acumulam diferentes benefícios e chegam a receber três dígitos em um mês, os colocando entre os mais ricos da população brasileira. Schwartsman diz que resolver a questão fiscal é urgente, mas apenas parte dos problemas do país. Para ele, há também um problema sério de produtividade a ser amenizado com a reforma tributária.
Empresas brasileiras gastam, em média, 1.501 horas por ano para lidar com a burocracia de impostos, quase dez vezes a média da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que reúne países ricos. Ele também vê como necessário promover regras para tornar o país mais competitivo. Mas volta ao ponto inicial ao dizer que as mudanças precisariam de consenso político, algo que, na visão de Diamond, é dificultado quando a elite política está isolada das consequências “vivendo em ambientes cercados e bebendo água engarrafada”. “A solução dos problemas está clara, não é uma questão de inventar nada. Mas é muito complicado gerar um consenso, e isso é reflexo de uma sociedade em que cada um briga pelo seu e não pelo conjunto”, afirma Schwartsman.
A economia não está se recuperando em “V”, o teto de gastos tem risco de ser rompido em 2021, e o auxílio emergencial será necessário neste ano. A avaliação, que destoa do discurso do governo, é do economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado). Avesso à ideia de que a pandemia pode estar mostrando uma tendência concreta de piora, o ministro Paulo Guedes (Economia) mantém como pilar do plano A um começo de 2021 sem grandes manobras orçamentárias, com as contas públicas voltando à normalidade.
O ministro afirma que o país ainda tem um prazo até meados de fevereiro para avaliar a situação da pandemia. De acordo com ele, medidas emergenciais adotadas em 2020 terão efeito no início deste ano. Ao mesmo tempo, Guedes conta com sobras de recursos do Orçamento de 2020 para lidar com eventuais emergências. Para Salto, o governo não deveria estar com essa sensação de controle do problema. Segundo ele, a economia vem se recuperando, mas em ritmo lento. “Ainda que o ministro Paulo Guedes diga que está tirando aos poucos o auxílio emergencial, ele chama de ‘aos poucos’ mudar de R$ 600 para R$ 300 e de R$ 300 para zero. Não é um argumento que para de pé. O fim do ano-calendário não vai matar o vírus, o governo precisaria ter uma força-tarefa para ver o que dá para cortar no Orçamento de 2021 para financiar essas despesas que serão necessárias”, disse.
De acordo com o economista, todos os países do mundo tiveram de aumentar gastos em 2020 para combater a pandemia. A diferença, segundo ele, é que alguns estavam menos preparados quando a crise sanitária chegou —o Brasil se insere nesse grupo. Para ele, o país estaria em situação mais confortável se tivesse aprovado antes um conjunto de medidas para reduzir os gastos obrigatórios. “Essa dívida astronômica que vamos ter em 2020 é muito preocupante”, disse. Na avaliação de Salto, o caminho para a solução dos problemas fiscais não passa por uma flexibilização imediata da regra do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas públicas à variação da inflação.
Pelas projeções da IFI, é alto o risco de rompimento do teto já em 2021. “Não adianta o governo repetir ‘vou cumprir o teto’ quando todo o mundo está vendo que é impossível. Esse é um encontro marcado que o governo tem com a discussão das regras fiscais”, disse. O roteiro defendido pelo economista passa, em primeiro lugar, por uma mudança na Constituição para fazer o teto de gastos valer integralmente.
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