Especialistas que participaram de um webinar promovido pela Agência Fapesp e pelo Canal Butantan avaliam que os dados do Amazonas corroboram uma hipótese que começa a ganhar força na comunidade científica: a de que o limiar da imunidade coletiva ao coronavírus (SARS-CoV-2) pode ser alcançado quando algo em torno de 20% da população é infectada – bem antes, portanto, do que estimaram os trabalhos de modelagem feitos no início da pandemia: entre 50% e 70%.
Quando se olha para a evolução da Covid-19 no Amazonas, é possível ter uma ideia do que ocorreria em boa parte do mundo caso os governos optassem por deixar a pandemia seguir seu curso natural, com poucas medidas efetivas para mitigar o contágio. Em meados de abril, apenas um mês após a confirmação do primeiro caso em Manaus, o já frágil sistema de saúde local entrou em colapso. No fim de maio, quando a prefeitura da capital amazonense precisou abrir covas coletivas para sepultar as vítimas, o número de novos casos e óbitos diários atingiu o auge e, a partir desse momento, começou a cair. A tendência de queda vem se mantendo constante no Estado, mesmo com comércio e escolas em funcionamento desde junho, e a despeito de estudos indicarem que nem 30% da população desenvolveu imunidade contra o novo coronavírus.
O grupo coordenado pela biomatemática portuguesa Gabriela Gomes (atualmente na University of Strathclyde, na Escócia), que inclui pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), foi um dos primeiros a apontar nessa direção, com base em projeções feitas por um modelo matemático que leva em conta o fato de que os indivíduos de uma população têm diferentes graus de suscetibilidade e de exposição ao vírus. “Chegamos à conclusão de que essa heterogeneidade pode alterar muito os resultados e em um sentido positivo. A epidemia deve ser menor do que o previsto pelos modelos homogêneos [que não consideram os diferentes níveis de suscetibilidade e exposição entre os indivíduos] e o limiar da imunidade coletiva também deverá ser menor do que aquele que os modelos clássicos indicam”, afirmou Gomes durante o seminário online, realizado na terça-feira (4).
A pesquisadora ressaltou, no entanto, que alcançar o limiar de imunidade coletiva não significa o fim imediato da epidemia. Como as cadeias de transmissão já estão instaladas na população, é esperado que o número de casos acumulados continue a crescer, ainda que de forma mais lenta, podendo chegar ao dobro do que foi registrado no pico da curva epidêmica. “Com uma mitigação cuidadosa podemos fazer com que a diferença entre o número de infecções existentes quando o limiar de imunidade coletiva foi atingido e o tamanho final da epidemia seja menor. Para isso é preciso controlar os surtos que vão surgindo de forma localizada e adotar medidas como o rastreamento de contato”, disse.
Os dados do maior estudo de soroprevalência feito no país (para medir a proporção de pessoas com anticorpos contra o SARS-CoV-2), o Epicovid – apresentados no webinar pelo epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Bernardo Horta –, vão ao encontro das projeções feitas com o “modelo heterogêneo” desenvolvido por Gomes. Na primeira onda de testes da pesquisa da UFPel, conduzida entre 14 e 21 de maio, somente algumas cidades da região Norte e Fortaleza, no Nordeste, apresentaram mais de 5% da população infectada. Na terceira e última onda, entre 21 e 24 de junho, quase todo o Norte e o Nordeste – além da cidade do Rio de Janeiro – já registravam mais de 5% de soroprevalência.
E é justamente nesses locais que atualmente a taxa de contágio (Rt) do novo coronavírus está abaixo de 1, ou seja, cada infectado está transmitindo o vírus para menos de uma pessoa em média e, portanto, o número de casos novos segue tendência de queda. Mesmo em cidades como Breves, no Pará, onde 24,8% das pessoas testadas na primeira onda do estudo apresentaram anticorpos contra o SARS-CoV-2, a taxa de soroprevalência em nenhum momento ultrapassou 30%. Em alguns locais da região Norte, contou Horta, a proporção de pessoas com anticorpos contra o vírus diminuiu entre a primeira e a terceira etapa de testes – ainda não se sabe ao certo por quê.
Para o infectologista Júlio Croda, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), somente a imunidade coletiva poderia explicar por que os Estados do Norte, Nordeste e a capital fluminense – mesmo sem um distanciamento social efetivo – apresentam hoje uma taxa de contágio inferior a 1. Ele ressalta, no entanto, que a imunidade de rebanho não deve ser adotada como política pública, pois nenhum sistema de saúde é capaz de ofertar a quantidade de leitos de terapia intensiva necessária para enfrentar a primeira onda da doença sem medidas de mitigação.
“Manaus teve o maior excesso de óbitos entre todas as cidades do Brasil, chegou a 500%. Foram registradas [em 2020] cinco vezes mais mortes que nos anos anteriores – 90% delas por causas respiratórias. O caso do Amazonas nos permite entender como seria a história natural da doença. Mas não estamos propondo isso como estratégia. É a constatação de uma tragédia. Temos de aprender com os dados reais”, defendeu Croda.
Foto: Andréa Rocha e Danilo Ferrucci/Agência Fapesp