No artigo “A desigualdade e a educação superior gratuita” publicado anteriormente aqui, argumentei que no Brasil a educação superior é gratuita e o acesso a mesma é feito por uma prova em que todos concorrem. Afirmei que, com esse mecanismo de seleção, aqueles que obtém educação básica melhor, quase sempre nas escolas privadas, tem maior probabilidade de obter sucesso para ter acesso a uma vaga, ou seja, haveria um viés de seleção.
Aqueles argumentos foram usados para concluir que a universalidade da gratuidade da educação superior magnifica a desigualdade de renda no Brasil. Várias vozes se levantaram contra minha conclusão. Contra argumentaram afirmando que o ensino público passaria a ser pago e os indivíduos pobres não teriam acesso a um ensino superior de melhor qualidade por que não teriam condições de pagar as mensalidades. Além do mais, este seria o primeiro passo para a privatização do ensino superior público brasileiro. Neste caso, a tríade ensino público, gratuito e de qualidade estaria quebrada.
No entanto, essas vozes entenderam errado minha conclusão. Não advogo a eliminação da gratuidade, mas concedê-la para quem de fato precise dela. Parodiando os Titãs, que cantaram “polícia para quem precisa de polícia”, eu advogo que a gratuidade deve ser concedida para quem de fato precisa da gratuidade, ou seja, “gratuidade para quem precisa de gratuidade”. Esses indivíduos são quase sempre oriundos de famílias pobres, ou da classe média baixa, que estudaram o ensino médio na rede pública, vários deles do interior de seus estados natais.
Indivíduos com aquelas características, de fato, não teriam condições de arcar com mensalidades. Isto ficou ainda mais grave com o estabelecimento do ENEM. Por neste processo de seleção, os candidatos podem ter acesso a vagas oferecidas por qualquer Instituição de Ensino Superior (IFES) que tiver participando do sistema. Isto implica que um aluno do Acre pode acessar uma vaga oferecida por uma IFES de qualquer estado da federação, aqui na Bahia por exemplo. Ele terá que arcar com as despesas de morar em uma cidade que não é perto de sua cidade natal. Sendo ele oriundo de uma família pobre, provavelmente reivindicará assistência estudantil. Esta não está disponível para todos no montante necessário. Não tendo acesso a assistência estudantil, provavelmente não fará o curso pelo qual conseguiu a vaga. Não é à toa que muitas IFES não preenchem a totalidade das vagas que oferecem.
Admitindo a possibilidade de que os indivíduos oriundos de famílias ricas pagassem uma mensalidade, os recursos provenientes dessas poderiam ser canalizados para a concessão de bolsas, aumentando as possibilidades de assistência estudantil. Pela situação atual, a universalidade da gratuidade, o sistema pratica uma ação do tipo Robin Hood às avessas, pois se tira recursos dos pobres para dar aos ricos.
Os cursos mais disputados, aqueles em que as famílias visualizam uma maior empregabilidade futura, e com salários maiores, tem suas vagas ocupadas por indivíduos com famílias de renda média maior. Vou usar os dados da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) para ilustrar.
O curso de medicina tem taxa de migrantes de 61,22%. Esses são indivíduos que se deslocaram de seus estados natais para estudar na UFPB. Ou seja, suas famílias têm condições de sustentá-los. Esta mesma taxa para o curso de pedagogia é de 18,80%. A média da UFPB é de 22,97%. Dentre os alunos que passaram para cursar medicina oriundos de outros estados, os pedidos de assistência estudantil são mínimos, já os de pedagogia são muitos. Os alunos de medicina poderiam financiar os alunos de pedagogia. Ai teríamos uma ação digna de Robin Hood, que são os ricos financiando os pobres. Digo isto por que a renda média das famílias dos alunos de medicina é quase 10 vezes a renda média das famílias dos alunos de pedagogia. Observem que a universidade não deixaria de ser pública, muito menos gratuita, mas justiça social estaria acontecendo.
Evidentemente que a cobrança de mensalidades de parte do alunado tem potencial de mudanças comportamentais. Quem paga tende a cobrar. Será que num ambiente como este o alunado aceitará passivo uma greve de 5 meses? Será que se aceitará um semestre que começa num dia, tem interrupção 30 dias depois para só ter retorno após 45 dias com a justificativa de que os professores têm o direito de ter férias em janeiro para coincidir com as férias escolares dos filhos? Acho que essas mudanças comportamentais, e as cobranças que virão delas, são as principais fontes de oposição à cobrança de mensalidades nas IFES.