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TERRA PRODUTIVA E DESAPROPRIAÇÃO – JOSÉ MACIEL DOS SANTOS FILHO  (1)

João Paulo - 17/10/2023 10:20 - Atualizado 23/10/2023

Ao julgar recentemente Ação de inconstitucionalidade impetrada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária -CNA, arguindo a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei de Reforma Agrária, de 1993, que igualaria terras produtivas e improdutivas, o Supremo Tribunal  Federal (STF) adotou uma  interpretação que,na visão de alguns autores, parece contrariar a Constituição Federal, que diz, em seu artigo 185, que a pequena, a média e a propriedade produtiva são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária. Diz ainda o artigo 185 que a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social. Em suma, a propriedade privada, mesmo produtiva, pode ser desapropriada para a reforma agrária, caso não cumpra sua função social. Além de surpreender , já que o entendimento predominante nos tribunais era no sentido de que a propriedade produtiva não pode ser objeto de desapropriação, essa decisão introduz um elevado grau de instabilidade, incerteza e insegurança jurídica, com potencial de gerar prejuízos à atividade produtiva e aos investimentos no campo.

Segundo Cláudio Chequer, a partir da interpretação sistemática desses dispositivos da Carta Magna, grande parte de nossa doutrina tem sustentado que somente poderia ser desapropriada para fins de reforma agrária, no Brasil,  a grande propriedade rural improdutiva e que não cumpre a sua função social. Autores de grande calibre jurídico defendem esse raciocínio, a exemplo de José Afonso da Silva, Ives Gandra Martins e Fábio de Oliveira Luchési. De acordo ainda com Chequer, esses juristas argumentam que se a propriedade rural é produtiva, mas não cumpre a sua função social, “a única saída é induzir seu proprietário , sob pena de sanção, a fazer a grande propriedade rural cumprir sua função social”, Para eles, a propriedade produtiva atende a primeira e fundamental função social, de qualquer estabelecimento rural: produzir frutos, fato que a afasta da desapropriação para fins de reforma agrária.

Esse  tipo de entendimento se encaixa no espírito de leis mais modernas do nosso ordenamento legal, como é o caso do Código Florestal, de 2012. Nessa lei, se o proprietário rural não está cumprindo certos dispositivos, como aqueles relacionados  às exigências de Reserva Legal e de Áreas de Preservação Permanente ,não se aplica a ele de imediato qualquer sanção punitiva mais radical. Ao proprietário enquadrado nessa condição é dada a chance de aderir ao Programa de Regularização Ambiental, dando um tempo para que ele recomponha sua vegetação nativa desmatada, e, portanto, regularize sua situação perante o novo Código Florestal . A penalidade de desapropriação prevista na Lei da de Reforma Agrária e na decisão recente do STF, seria, nessa perspectiva, seria uma medida desproporcional, ainda mais nesse caso em que a Constituição de 1988 prevê tratamento especial para a propriedade  produtiva.

 

O exame da matéria pela Suprema Corte poderia considerar a análise comparativa (não sabemos se isso foi feito) da Lei de Reforma Agrária com outras leis do nosso ordenamento jurídico, a exemplo do Código Florestal , de 2012, já mencionado. Nesse exemplo concreto,  a Lei de Reforma Agrária estabelece que, para cumprir a função social,  a propriedade rural deve obedecer  a legislação trabalhista e ambiental, e atender coeficientes mínimos de  uso da terra e de eficiência da exploração agropecuária. Supondo que uma propriedade de 100 hectares localizada em área do bioma Amazônia esteja cumprindo todos os requisitos acima e, no caso do uso da terra, lhe seja imposto atingir um Grau de Uso da Terra – GUT de, no mínimo , 80%, que é o valor mínimo do GUT estipulado na lei acima citada. O  GUT é o percentual mínimo de utilização produtiva do imóvel, calculado pela relação entre a a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel. Vamos supor ainda que a área aproveitável , em termos de aptidão agrícola, do estabelecimento em tela, seja igual a 80%. Então, este imóvel só cumpriria sua função social se utilizasse produtivamente pelo menos 64 hectares ( 80% de 80%).  Ocorre que, pelo novo Código Florestal, de 2012, ele só pode explorar, no máximo, 20% da área total de seu imóvel, já que a Reserva Legal, a área que deve permanecer intocada, é  de 80%, neste bioma Ou seja, ele só pode mobilizar 20 hectares para uso produtivo nesse caso, o que vale dizer , ele jamais alcançará os 64 hectares previstos no cálculo do GUT, na Lei de Reforma Agrária. O potencial de colisão de dispositivos dessas duas leis pode, portanto, existir, ao menos no caso concreto. Ele terá de obedecer a qual dessas duas Leis?  Deixemos essa questão para os juristas e advogados,  mas não temos dúvida em afirmar que o nosso Código Florestal é uma lei mais atual, mais moderna  e mais compatível com os novos tempos , tempos  esses em que os mercados e a legislação internacional impõem  cada vez mais exigências de compatibilização da produção agropecuária com a sustentabilidade ambiental e com menos desmatamento.

Do exposto, cabe pontuar que a decisão do STF tem potencial para gerar incertezas e insegurança jurídica , além da possibilidade de ocorrência de situações pontuais  de incompatibilidade com outros diplomas legais, mais recentes até que a Lei de Reforma Agrária. Esta é de 1993 e o Código Florestal é de 2012, por exemplo.

Apesar disso, respeitamos, claro, a decisão do STF. Embora  a Suprema Corte seja a última instância recursal do judiciário brasileiro, achamos que a matéria aqui discutida mereceria um reexame. Quem sabe, à luz dos argumentos de vários juristas aqui citados, a CNA ingressa com um  pedido de reapreciação da matéria junto ao STF. Se terá êxito nessa nova tentativa, não sabemos.

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