Os 198 países participantes da COP27 chegaram a um acordo na madrugada deste domingo, dois dias após a data que a conferência deveria ter terminado na cidade egípcia de Sharm el-Sheikh, para a criação de um fundo sobre perdas e danos.
É uma decisão sem precedentes nas conferências climáticas, apesar de termos vagos que deixarão os detalhes para o ano que vem e avanços aquém do necessário para combater as causas do aquecimento global.
Votado em uma plenária às 4 horas da manhã na cidade egípcia de Sharm el-Sheikh (23h de sábado no Brasil), o texto prevê a “criação de novos mecanismos de financiamento para ajudar países em desenvolvimento que são particularmente vulneráveis para os efeitos adversos das mudanças climáticas”. Os detalhes da linguagem, no entanto, foram parte do que fez a reunião de 12 dias extrapolar o prazo previsto, algo de praxe nas conferências do clima.
A proposta menciona também a busca por “novos arranjos financeiros”, indo de encontro às iniciativas dos Estados Unidos divulgadas na COP27 — mercados de carbono e um mix de fontes que pode incluir bancos multilaterais e seguradoras. O assunto ganha cada vez mais urgência, após os custos de eventos climáticos extremos ultrapassarem US$ 220 bilhões neste ano.
— A COP27 fez o que nenhum outro país conseguiu, criando um fundo de perdas e danos para apoiar as comunidades mais impactadas pelas mudanças climáticas. Isso era algo que os países demandavam desde a Cúpula da Terra do Rio de 1992 — disse o ativista Mohamed Adow, diretor executivo da ONG Power Shift Africa. — Após 30 anos de dor, ação climática está finalmente vindo para casa em solo africano aqui no Efito.
Um fundo para perdas e danos era posto como uma das questões centrais desta COP, mas também uma das mais espinhosas e difíceis de aprovar. O Reino Unido e a União Europeia historicamente se opunham à criação do mecanismo, uma demanda de mais de três décadas dos países mais vulneráveis, temendo que se equiparasse a uma admissão de culpa e abrisse a porta para pedidos bilionários de reparações.
Desavenças
Os países mais vulneráveis defendiam a medida apontando para o fato de que são responsáveis por uma parcela ínfima das emissões de gases-estufa, mas os mais afetados pelos seus impactos. Apontam para o fato de os maiores emissores históricos serem os países industrializados, cuja riqueza nas últimas décadas veio às custas da poluição da atmosfera.
O texto cria também uma “comissão de transição” para a operacionalização do mecanismo e os termos de acesso e recursos potenciais — detalhes que serão formalizados na COP28, que acontecerá em novembro de 2023 nos Emirados Árabes Unidos. Entre suas funções estará “identificar e expandir fontes de financiamento”, uma questão-chave.
Países desenvolvidos demandam que economias emergentes que emitem cada vez mais gases-estufa, como a China e a Índia, também abram os bolsos. Era um recado em particular para os chineses, hoje responsáveis por 27% de todas as emissões planetárias, bem mais que os cerca de 12% dos americanos, na segunda posição.
No entendimento dos países emergentes, contudo, os recursos para perdas e danos têm que vir dos países mais ricos e historicamente responsáveis pela maior emissão. O grupo do G77 mais China — que na verdade engloba 134 nações em desenvolvimento e negocia em conjunto nas COPs para pressionar as nações mais ricas —, aponta para os termos da Convenção do Clima de 1992. Pelas regras, os desenvolvidos têm dever de liderar as ações e os em desenvolvimento podem ajudar, mas com responsabilidades diferenciadas.
“Um fundo para perdas e danos é essencial — mas não é a resposta se a crise climática varre do mapa um pequeno Estado-ilha ou transforma um país africano inteiro em deserto”, disse em comunicado o secretário-geral da ONU, António Guterres. “O mundo ainda precisa de um salto gigante em ambição climática. A linha vermelha que não devemos cruzar é a linha que leva nosso planeta para além do limite de temperatura de 1,5ºC”.
Com o mecanismo em vias de implementação, outros recursos modestos para perdas e danos vieram do chamado de “Global Shield”, que envolve a proposta das economias mais ricas do mundo, o G7, e alguns outros compromissos, coletivos ou individuais. O mecanismo principal tem cerca de 200 milhões de euros disponíveis, mas só as chuvas torrenciais que atingiram o Paquistão neste ano causaram danos de US$ 30 bilhões, estima-se.
Debates ainda abertos
As promessas também são vista com um pé atrás: apontam, por exemplo, para o já atrasado financiamento climático de US$ 100 bilhões anuais para serem entregues entre 2020 e 2025 — algo sobre o que o documento expressa “séria preocupação”. Se o documento de Glasgow, a sede da COP26, falava em “ao menos dobrar” as verbas para adaptação, o deste ano fala apenas em “aumentar”.
Os debates ainda não haviam sido encerrados às 8h da manhã em Sharm el-Sheikh (3h no Brasil), mas os últimos rascunhos não iam além de Glasgow na linguagem para manter viva a esperança de manter o aumento da temperatura global a 1,5ºC até 2100 em comparação com os níveis pré-industriais, patamar considerado limítrofe para evitar um catacislimo ambiental. Ao contrário da resolução da COP do ano passado, que mostrava o tema como uma solução de mitigação, neste ano ele fica sob o guarda-chuva da ciência.
O documento “reitera” que os impactos serão “muito menores” se isso ocorrer e “resolve” buscar mais esforços para atingir a meta. Também “reconhece que limitar o aquecimento global a 1,5ºC requer reduções rápidas, profundas e sustentadas das emissões de gases-estufa de 43% até 2030, em comparação com os níveis de 2019” — algo que não estava no documento final da COP26.
Concordou-se, contudo, com a criação do “Plano de Implementação de Glasgow”, que cria um programa de trabalho até 2030 para avançar a implementação dos objetivos de redução das emissões. Faz um apelo para que países que ainda não atualizaram suas metas voluntárias o façam, mas não vai muito além — pelo firmado no Acordo de Paris, são instado a torná-las mais ambiciosas a cada cinco anos. A primeira atualização foi feita em 2021.
Combustíveis fósseis
O pouco avanço no que diz respeito aos combustíveis fósseis nos rascunhos foram mau recebidos. O texto fala da “redução gradual” do uso do carvão e o “abandono gradual dos subsídios a combustíveis fósseis ineficientes” — linguagem similar à do pacto firmado no ano passado em Glasgow. Também “enfatiza a importância de melhorar suas matrizes energéticas limpas, incluindo energias de baixa emissão e renováveis”.
— A presidência egípcia produziu um texto que claramente protege os Estados do petróleo e do gás, além da indústria de combustíveis fósseis. Essa tendência não pode continuar nos Emirados Árabes Unidos no ano que vem — disse Laurence Tubiana, uma das arquitetas do emblemático e vinculante Acordo de Paris, de 2015.
A referência posta pela presidência egípcia a “energias de baixa emissão” foi vista como uma lacuna para o gás natural, cuja escassez após os cortes russos desencadeou uma crise energética na Europa, fez o preço do produto ir às alturas e abriu uma oportunidade de mercado para países do Norte da África com o Egito. Países que são importantes produtores de combustíveis fósseis traçaram uma linha vermelha na linguagem mais ambiciosa. Segundo a lista de nomes credenciados pela ONU, havia 636 lobistas do setor em Sharm el-Sheikh.